domingo, outubro 06, 2024

A brevidade da Felicidade ou as mãos de fada da Emília

 

Se não fosse o amigo Vitor falar-me sobre sua mãe, a Emília que, como ele diz, “não lia uma linha, nem escrevia um comboio”, mas sabia todas as receitas de cor,de tantas coisas boas que transmitia oralmente possibilitando assim que, hoje, ele possa imiscuir no trabalho da equipa da cozinha de seu restaurante, o Bem me quer Mal me quer e, mesmo com todo o brio profissional da Dona Rosa e o Vladimir aceitas suas opiniões, pois sabem que quem diz é quem bem ouviu, donde concluí, em pensamento que saber ler e escrever era somente para passar a receita à distância no tempo ou espaço... Ah! Se não fosse a história da Dona Emília eu estaria incorrendo na injustiça da memória que até então só lembrava da minha avó Sinhazinha, Dona Sinhá, de nome Felicidade e que me criou até a idade escolar,apenas porque ralhava muito comigo e porque fazia uns biscoitos de polvilho que tinha o nome de brevidade e que, iguais, nunca vi em sítio algum por onde andei. E, mea culpa, eu que até já me alimentei de livros que escrevia e vendia de mão em mão, de auferir alguns prêmios literários e que no momento escrevo mais um, meã máxima culpa, não me recordava de que foi ela quem me ensinou a ler e escrever e muitas das ralhas era para que eu pegasse direito na pena de pato ou que mantivesse o padrão do caderno de caligrafia e, fazer bem para depois comer brevidade.

Em tempo: Saber escrever é só para passar a receita. A arte de fazer é outra história.


domingo, setembro 29, 2024

Obrigado, Saramago

 

Poderia estar agradecendo a Érico Veríssimo, Miguel Torga, Augustina Bessa Luís, Craveirinha, Mia Couto, Jorge Amado, Vergílio Ferreira... a tantos outros mas, calhou a Saramago.

Desde pequeno que, na escola, nas rodas de amigos ou mesmo por desconhecidos, sou gozado ou “corrigido” por dizer Nobel bem aportuguesadamente como manda a regra mneumónica do Rouxinol, que diz que para ser paroxítona terminada numa dessas letras, tem que levar acento. Porém, a maioria diz Nóbel, justificando essa mania que parece que só os brasileiros e os portugueses têm de querer dizer os nomes próprios como são falados no original, mesmo os nomes cujos fonemas não tem registo na língua portuguesa e nos obriga a muita careta e arranhar da garganta. E nem adianta alegar que o Mário Quintana garantiu que em sueco, Nobel é Nobel mesmo. Como as notícias chegam-nos através de agências de língua inglesa que não tem a mesma preocupação, reproduz-se segundo esta.

Até que... finalmente chegou a vez da lusofonia. Também tenho um! O prémio é meu, falo do jeito que quiser:

Nobel, Nobele, Nobé, Nóbi, Nober...


domingo, setembro 22, 2024

O atleta

 

Era uma vez, num futuro não muito longínquo, uma Corporação que cresceu em torno de um grande mercado de valores e veio a registar uma das maiores rendas per capita do globo corporativo. Apesar de nela morarem algumas das pessoas mais creditadas do Sistema Distribuidor de Créditos, seu mais conhecido representante era um atleta que, nos últimos Jogos, bateu um recorde acumulado de muitos anos e, de momento, todas as suas medalhas electrónicas de crédito instantâneo estavam sendo contestadas pelo comitê intercorporativo, em audiência interna.

A acusação: ter negligenciado seus compromissos profissionais não tomando a droga prescrita pelo laboratório, seu patrocinador.

- Pela manhã, deixei a droga diluída num copo d’água, na mesa de cabeceira – explica o Atleta – Tomei-a quando voltei do pequeno-almoço.

- E como explica que em todas as análises não foi encontrado nenhum vestígio e o mesmo na contra-análise?

- Tenho a minha consciência tranquila. Bebi a água. Não dei por nada porque, como todos sabem, essa substância é insípida e... Bem, a única explicação que posso dar é que a camareira do hotel, ao fazer a arrumação, tenha derramado o copo e colocado outro com água pura.

- E porque ela faria uma coisa destas?

- Por acidente. Sei lá eu!

- Ou por sabotagem. Vamos averiguar. Ela pode ser uma agente de um outro laboratório. – o presidente da mesa está nervoso – O facto é que estamos num quiproquó daqueles. Não podemos legitimar a vitória, pois não temos como satisfazer as exigências do patrocinador, que é a propaganda do seu produto. Por outro lado, não podemos tirar-lhe as medalhas alegando que você não tomou a droga. O patrocinador ficaria desmoralizado. Afinal, tantos créditos gastos e...

- Podemos anular as vitórias por outro motivo. – tranquiliza um dos membros do comitê – Tenho conhecimento de que durante os preparativos dos Jogos, o atleta cometeu uma falta imperdoável para um profissional de altíssima competição. Fez uma exibição desonerada. Não recebeu um crédito sequer. Não foi assim, meu jovem?

- Bem! Foi na minha corporação natal. Recusei os créditos que os organizadores ofereciam, mas não corri de graça. Tive a minha paga.

- Como assim?

- Essa minha terra é uma corporação daquelas criadas por uma grande superfície comercial, mas que tem uma área em estufa para experiências agrárias anciãs onde cultivam uma planta com o nome de trigo e com ela fazem uns pãezinhos que são uma das atracções turísticas da região, dos quais eu gosto muito, mas são muito caros. Portanto, eu troquei os créditos de minha apresentação pelo equivalente em pães.

- Senhores! – o presidente levanta-se com ares de quem está prestes a pedir demissão do cargo – Os senhores não percebem a gravidade da situação. Temos motivos para castigar o atleta, mas, o que dizer à opinião pública, aos consumidores? Todos viram os feitos do atleta e quererão saber que droga ele tomou, como ela se processou no metabolismo na altura da prova, enfim...

 

Como ficou resolvida a questão, sinceramente, não sei. O que sei é que muito tempo depois restou a Lenda do Atleta de Pés Alados, que dizia assim: Era uma vez, há muitos e muitos anos, um atleta que parecia ter asas nos pés e que se alimentava só de pão e água...

 

Lisboa, 2000

(Em lembrança de Jim Thorpe e de outros desportistas injustiçados)


domingo, setembro 15, 2024

O incorruptível almeida

Mais do que as taxas, chateiam-nos a espera e a burocracia dos serviços públicos, o que nos leva, às vezes, a lançar mão de alguns subterfúgios. Foi o que aconteceu comigo a quando das obras na nova casa velha de Alfama e que me deixou duas noites sem dormir e a pensar que teria sido bem melhor ter arcado com todas as chatices da legalidade.

O encarregado da reforma juntou o entulho em sacos plásticos, empilhou-os à porta e disse-me que desse uma gorjeta para o lixeiro que, com certeza, levaria junto com a recolha diária. Relutei e até pensei que seria má ideia mas, ao ver o gari, ao longe, lembrei-me de uma vez que ele, ao entrar no Tejo bar para pegar o saco de lixo e um cliente ofereceu-lhe uma bebida e ele recusou dizendo que não bebia e, conversa vai, conversa vem, o cliente ao saber dos apuros que ele passava com a doença da mulher, deu-lhe uma boa quantia que foi agradecida em típica cena de noites ébrias entre abraços e olhos mareados. Não briguei mais com a consciência e passei da intenção ao acto. Discretei a nota e fiz o pedido.

- Só lixo doméstico! – taxou com um abano de cabeça e com uma cara que por si só já me deixaria uma noite inteira de insônia que duplicou quando, ao  aperceber-me que da outra vez, fora uma prenda,um agrado, uma ajuda... desta, o nome era outro... apresentei minhas desculpas que foram recusadas juntamente com o aperto de mão.

Durma-se com uma destas!


 

segunda-feira, setembro 09, 2024

História e histórias

 

História e histórias

 

O meu amigo Horácio bem poderia ser chamado Homero ou até mesmo Heródoto porque, vai gostar de história assim, na China, ou melhor, na Grécia Antiga. Um dos temas que mais lhe atrai a atenção é a origem dos nomes das terras. Duas histórias a esse respeito vou contar mas, alerto ao ouvinte ou leitor que, a história contada pelo Horácio é como a dos outros dois e a de outros historiadores, é cheia de histórias.

A primeira, conta que uma nave portuguesa ao passar pelas Caraíbas, deixou em uma das ilhas quatro tripulantes que haviam contraído escorbuto. Como a ilha era farta de frutos, os quatro escaparam à morte. A nave, ao passar novamente pela ilha e diante do facto, baptizou a ilha de Curação. Os espanhóis, na senda dos portugueses, tiraram-lhe o til e os holandeses desnasalaram de vez o vocábulo, dando no que é hoje, Curaçao.

A outra deu-se na costa de África. Conta o Horácio que um outro navio português ancorou num sítio muito a ermo, a procura de água. A tripulação encontrou um ermitão que, apesar de viver isolado e de não falar nada, era muito solícito e amigável. Mostrou aos portugueses as melhores fontes e ajudou a carregar víveres para a embarcação. Um homem preto como a noite, muito grande e forte que foi logo baptizado de Zé e, sempre que os portugueses passavam por perto do tal sítio, diziam: “Vamos lá no Zé Negão!” Os ingleses e franceses, na senda dos portugueses e espanhóis, não tinham o jeito e ficou, Senegal.


segunda-feira, setembro 02, 2024

Senhor Arlindo, o engraxador

 


O  senhor Arlindo trabalha todos os dias. Quando o restaurante A Mourisca, a esquina da Fontes Pereira de Melo com a Andrade Corvo, está fechado, ele muda o ponto para o Forno e Fogão, restaurante mais próximo. Pela  manhã, bem cedo, lá está ele com seu fato-macaco azul escuro,impecavelmente limpo e engomado, à espera dos primeiros clientes. Bancários, empregados do comércio, vendedores, escriturários e pessoas a procura de emprego. Estava eu a observar sua cabeça branca ao rés das mesas que alternava agilmente quando,como que por pressentimento, seus olhos se erguem para a porta de entrada onde um homem de meia idade, elegantemente vestido, com ar tranquilo de executivo bem sucedido, que contrastava com a maioria dos que ali estavam, parado, a olhar carinhosamente para o senhor Arlindo que ao vê-lo, esgueira-se por entre os clientes. Abraçam-se carinhosamente, trocam beijos e algumas palavras e despedem-se com mais beijos. O empregado de mesa,ao perceber que eu os observava com curiosidade, diz-me e tom baixo:

- É seu filho.

- E fazia muito tempo que eles não se viam? – perguntei como que a perceber a razão de tanto carinho.

- Não. Isso é todo dia.


segunda-feira, agosto 26, 2024

O velho curandeiro


 

A paisagem seria totalmente desértica não fosse por três habitantes num raio de cerca de cem quilômetros e o escasso movimento da rodovia e ferrovia que cortavam a paisagem em paralelas. Um habitante cuidava do posto de serviço da rodovia. Os outros dois habitavam nas montanhas empedernidas que separavam as duas estradas.

 

Um caminhão deixa no posto de serviço o passageiro que ia tentar a vida na cidade, mas as dores o impediam de seguir viagem.

 

- É uma infecção que tenho há tempos, entre os dedos dos pés. – explica ao dono do posto que lhe ajuda a tirar as botas. – Já estava mal e com o calor da cabine do caminhão, piorou. Está insuportável.

- Já tive isso. – diz o outro, olhando as feridas. – Há quem chame pé-de-atleta.

- Mas, dizem que não tem cura.

- Sei. E sofri imenso com isso até que vim para Ca e conheci o velho que mora nas montanhas. É um curandeiro. Ele cultiva uma planta que nunca vi parecida. É rasteira, mas tem as folhas largas, arredondadas.

- É difícil de acreditar. Já fui em tantos médicos.

- Sei, sei. E todos passaram um monte de pomadas e banhos  e, nada. Pois, quando puder andar até lá, verá. Com uma só consulta... E simples. O velho veste umas roupas esquisitas, acende um cachimbo fedorento e, com um chocalho, começa a dançar acompanhado por um tambor que seu neto toca do alto de uma pedra. Você só tem que descalçar e pisar nas folhas NE mesmo lugar onde o velho pisou. Ele tira o pé e você, põe. É engraçado que você acaba por dançar também. Dá duas ou três voltas no canteiro e, pronto.

- É mesmo difícil de acreditar. Quer dizer que com dois passinhos de dança...

- Passos de mágica.

- E quantas vezes deixei de dançar por causa disso. E, agora, com uma dança...

- Claro que é só encenação do velho. Uma maneira de valorizar o trabalho dele. O que cura e a planta. Um ácido armazenado nos bulbos que tem nas folhas é injectado na pele ao pisar.

- E essa encenação é valorizada em quanto?

- O velho não leva nada. Claro que você vai ficar eternamente agradecido e de onde estiver pode mandar alguma coisa para ele. Comida, um bom vinho, coisa assim. As pessoas que ele já curou mandam sempre uma lembrancinha. Quando o comboio para no apeadeiro, é certo. Tem lá uma encomenda.

- Custa a acreditar.

- Pois, quando estiver melhor, vamos á. – fala, enquanto lava os pés do forasteiro com um bálsamo. – Vai ser difícil convencer o velho, porque ele não quem mais trabalhar. Anda desgostoso. Com umas ideias esquisitas. Mas se for eu a pedir, é capaz dele atender.

- É muito velho?

- Nem por isso. Mas inventou que não quer mais viver. Diz que perdeu a capacidade de riri. E a vida sem o riso não tem graça. Maluquices... mas entendo o velho. Perdeu tudo... e vai ficar só, pois o neto vai para a cidade. Sei como é. Passei por isso. Perdi emprego, família...

- Bebida?

- Jogo.Era uma doença que só tinha um jeito. Ficar longe das cartas. Assim fiz. Enfiei-me neste fim-de-mundo. Mas, tenho um objectivo. Minha filha está para entrar para a universidade e consegui juntar um dinheiro que dá para pagar seus estudos. É o mínimo que posso fazer para remediar tanta perda. Também não rio muito, mas morrer, só depois de ver minha filha formada. Fique aqui comigo. É bom que você me ajuda a ajeitar a casa. Há muito que precisa de uma reforma. Tapar uns buracos, coisa pouca. Quando melhorar, vamos lá ter com o velho.

O forasteiro ficou. A história do dinheiro para a filha não lhe saía da cabeça. Observou. O dinheiro era guardado no cofre atrás do frigorífico. Uma vez por semana, o dono ia à cidade fazer compras. Saía cedo e só voltava à tardinha. Seria fácil. Já conseguia calçar as botas e conhecia o caminho até ao apeadeiro.  E, a meio do caminho, o velho. A cura dos dois males que o afligiam: o físico e o financeiro.

 

O alforje estava pesado, pois muito do dinheiro era em moedas. A escalada era dorida e tinha de ser rápida.

- Onde está teu avô? – pergunta ao jovem sentado num penhasco.

- Está acolá.- e completa sem tirar os olhos do ponto onde as duas estradas pareciam juntar-se no horizonte. – Mas não adianta ir lá por que ele já não atende ninguém.

Acorda o velho que dormitava à sombra de uma pedra, junto ao canteiro das plantas mágicas que era a única coisa verde na região.

- ... e depressa que tenho que apanhar o comboio. – diante da recusa, aponta o revólver. – Senão... mato-te, velho!

- É um favor que me fazes. – responde sem mover um dedo. – Vocês levaram minhas terras, minha família, meu riso, e vão levar meu neto. Essa bala é bem vinda.

- Vá pro Diabo, velho tonto! – tira as botas e as meias e marcha sobre as plantas. – Ah! É para dançar,não é ,velho? E como é? É assim? – dança. – Assim, é Rock and  Roll. Ou será um Jazz. Assim. Que tal o Sapateado, velho? Ou uma Valsa! Trá-lá-lá-lá... Não. Vocês dançam é assim. Tum tum tum. Adeus, velho maluco. – vai-se embora a dançar, saltando sobre as pedras.

 

Ao chegar ao posto, logo deu pela falta do revólver na gaveta do balcão. Nem perdeu tempo em verificar o cofre. Apanhou a espingarda e uma caixa de munição e, com a imagem da filha na lembrança, avança para o caminho . Começa a descer as escarpas quando escuta os apelos do rapazote.

- Acuda o avô. Ele está a passar mal. Não consegue respirar. Ao longe vislumbrava o vulto do fugitivo. Não hesitou. A gratidão era eterna. Ergue os braços do velho que aos poucos retoma o ritmo da respiração entrecortada com risadas desconexas que lhe enchiam os olhos d’água e dificultava a fala.

- Então, velho, ias morrendo a rir? – vai saindo – Quando eu voltar, conta-me como foi isso.

- Não há pressa. O bobo do teu hóspede não irá longe. – diz o velho explodindo numa gargalhada. – Ah, que eu morro. Só de pensar como estão os pés dele agora...eu não aguento... imagino a dança que ele faz agora...

- Calma. Respira fundo. Conta lá, vai.

- Eu estava a dormir ali quando o teu hóspede apareceu... – e conclui entre riso. - ... acontece que as folhinhas têm de ser pisadas antes para ficar só a dose certa senão, o remédio vira veneno. Tudo tem de ser na dose certa, não é mesmo?

- Sei.Mas vou atrás do meu dinheiro. E, cuidado. Dose certa. Não vá ter outro acesso. E eu, vou dar-lhe uma dose certa de balas.

 

Mesmo que não conhecesse o caminho seria fácil seguir a trilha marcada pelos apetrechos que o outro deixava cair na trôpega caminhada. Primeiro o revólver. Notas. Moedas e outros objectos. Um monte de moedas aqui, outro mais a frente. E o próprio homem amontoado com o alforje, mochila e botas. Costas no chão. Pés para o alto. Gemidos. A dose certa de sofrimento.

 

Sem toda a parafernália, poderia arrastar-se sobre as pedras até o apeadeiro.

Não valia o preço de uma bala.