A paisagem seria totalmente desértica não fosse por três habitantes num
raio de cerca de cem quilômetros e o escasso movimento da rodovia e ferrovia
que cortavam a paisagem em paralelas. Um habitante cuidava do posto de serviço
da rodovia. Os outros dois habitavam nas montanhas empedernidas que separavam
as duas estradas.
Um caminhão deixa no posto de serviço o passageiro que ia tentar a vida
na cidade, mas as dores o impediam de seguir viagem.
- É uma infecção que tenho há tempos, entre os dedos dos pés. – explica
ao dono do posto que lhe ajuda a tirar as botas. – Já estava mal e com o calor
da cabine do caminhão, piorou. Está insuportável.
- Já tive isso. – diz o outro, olhando as feridas. – Há quem chame
pé-de-atleta.
- Mas, dizem que não tem cura.
- Sei. E sofri imenso com isso até que vim para Ca e conheci o velho
que mora nas montanhas. É um curandeiro. Ele cultiva uma planta que nunca vi
parecida. É rasteira, mas tem as folhas largas, arredondadas.
- É difícil de acreditar. Já fui em tantos médicos.
- Sei, sei. E todos passaram um monte de pomadas e banhos e, nada. Pois, quando puder andar até lá,
verá. Com uma só consulta... E simples. O velho veste umas roupas esquisitas,
acende um cachimbo fedorento e, com um chocalho, começa a dançar acompanhado
por um tambor que seu neto toca do alto de uma pedra. Você só tem que descalçar
e pisar nas folhas NE mesmo lugar onde o velho pisou. Ele tira o pé e você,
põe. É engraçado que você acaba por dançar também. Dá duas ou três voltas no
canteiro e, pronto.
- É mesmo difícil de acreditar. Quer dizer que com dois passinhos de
dança...
- Passos de mágica.
- E quantas vezes deixei de dançar por causa disso. E, agora, com uma
dança...
- Claro que é só encenação do velho. Uma maneira de valorizar o
trabalho dele. O que cura e a planta. Um ácido armazenado nos bulbos que tem
nas folhas é injectado na pele ao pisar.
- E essa encenação é valorizada em quanto?
- O velho não leva nada. Claro que você vai ficar eternamente
agradecido e de onde estiver pode mandar alguma coisa para ele. Comida, um bom
vinho, coisa assim. As pessoas que ele já curou mandam sempre uma lembrancinha.
Quando o comboio para no apeadeiro, é certo. Tem lá uma encomenda.
- Custa a acreditar.
- Pois, quando estiver melhor, vamos á. – fala, enquanto lava os pés do
forasteiro com um bálsamo. – Vai ser difícil convencer o velho, porque ele não
quem mais trabalhar. Anda desgostoso. Com umas ideias esquisitas. Mas se for eu
a pedir, é capaz dele atender.
- É muito velho?
- Nem por isso. Mas inventou que não quer mais viver. Diz que perdeu a
capacidade de riri. E a vida sem o riso não tem graça. Maluquices... mas
entendo o velho. Perdeu tudo... e vai ficar só, pois o neto vai para a cidade.
Sei como é. Passei por isso. Perdi emprego, família...
- Bebida?
- Jogo.Era uma doença que só tinha um jeito. Ficar longe das cartas.
Assim fiz. Enfiei-me neste fim-de-mundo. Mas, tenho um objectivo. Minha filha
está para entrar para a universidade e consegui juntar um dinheiro que dá para
pagar seus estudos. É o mínimo que posso fazer para remediar tanta perda.
Também não rio muito, mas morrer, só depois de ver minha filha formada. Fique
aqui comigo. É bom que você me ajuda a ajeitar a casa. Há muito que precisa de
uma reforma. Tapar uns buracos, coisa pouca. Quando melhorar, vamos lá ter com
o velho.
O forasteiro ficou. A história do dinheiro para a filha não lhe saía da
cabeça. Observou. O dinheiro era guardado no cofre atrás do frigorífico. Uma
vez por semana, o dono ia à cidade fazer compras. Saía cedo e só voltava à
tardinha. Seria fácil. Já conseguia calçar as botas e conhecia o caminho até ao
apeadeiro. E, a meio do caminho, o
velho. A cura dos dois males que o afligiam: o físico e o financeiro.
O alforje estava pesado, pois muito do dinheiro era em moedas. A
escalada era dorida e tinha de ser rápida.
- Onde está teu avô? – pergunta ao jovem sentado num penhasco.
- Está acolá.- e completa sem tirar os olhos do ponto onde as duas
estradas pareciam juntar-se no horizonte. – Mas não adianta ir lá por que ele
já não atende ninguém.
Acorda o velho que dormitava à sombra de uma pedra, junto ao canteiro
das plantas mágicas que era a única coisa verde na região.
- ... e depressa que tenho que apanhar o comboio. – diante da recusa,
aponta o revólver. – Senão... mato-te, velho!
- É um favor que me fazes. – responde sem mover um dedo. – Vocês
levaram minhas terras, minha família, meu riso, e vão levar meu neto. Essa bala
é bem vinda.
- Vá pro Diabo, velho tonto! – tira as botas e as meias e marcha sobre
as plantas. – Ah! É para dançar,não é ,velho? E como é? É assim? – dança. –
Assim, é Rock and Roll. Ou será um Jazz.
Assim. Que tal o Sapateado, velho? Ou uma Valsa! Trá-lá-lá-lá... Não. Vocês
dançam é assim. Tum tum tum. Adeus, velho maluco. – vai-se embora a dançar,
saltando sobre as pedras.
Ao chegar ao posto, logo deu pela falta do revólver na gaveta do
balcão. Nem perdeu tempo em verificar o cofre. Apanhou a espingarda e uma caixa
de munição e, com a imagem da filha na lembrança, avança para o caminho .
Começa a descer as escarpas quando escuta os apelos do rapazote.
- Acuda o avô. Ele está a passar mal. Não consegue respirar. Ao longe
vislumbrava o vulto do fugitivo. Não hesitou. A gratidão era eterna. Ergue os
braços do velho que aos poucos retoma o ritmo da respiração entrecortada com
risadas desconexas que lhe enchiam os olhos d’água e dificultava a fala.
- Então, velho, ias morrendo a rir? – vai saindo – Quando eu voltar,
conta-me como foi isso.
- Não há pressa. O bobo do teu hóspede não irá longe. – diz o velho
explodindo numa gargalhada. – Ah, que eu morro. Só de pensar como estão os pés
dele agora...eu não aguento... imagino a dança que ele faz agora...
- Calma. Respira fundo. Conta lá, vai.
- Eu estava a dormir ali quando o teu hóspede apareceu... – e conclui
entre riso. - ... acontece que as folhinhas têm de ser pisadas antes para ficar
só a dose certa senão, o remédio vira veneno. Tudo tem de ser na dose certa,
não é mesmo?
- Sei.Mas vou atrás do meu dinheiro. E, cuidado. Dose certa. Não vá ter
outro acesso. E eu, vou dar-lhe uma dose certa de balas.
Mesmo que não conhecesse o caminho seria fácil seguir a trilha marcada
pelos apetrechos que o outro deixava cair na trôpega caminhada. Primeiro o
revólver. Notas. Moedas e outros objectos. Um monte de moedas aqui, outro mais
a frente. E o próprio homem amontoado com o alforje, mochila e botas. Costas no
chão. Pés para o alto. Gemidos. A dose certa de sofrimento.
Sem toda a parafernália, poderia arrastar-se sobre as pedras até o
apeadeiro.
Não valia o preço de uma bala.