domingo, maio 19, 2024

O retrato perfeito



Noite. Fora, ainda a chuva que teimou em cair todo o dia. Na taverna, os homens, de assuntos esgotados, aguardavam por um estio ou por outros pretextos para mais conversa que acompanhasse as já poucas cervejas que ainda conseguiam beber. A atenção de todos voltou-se para a porta quando o velho do realejo entrara com o grande estardalhaço de coisas mal amarradas e ranger de molas produzido pela caixa do instrumento que o velho empurrava. O velho acomodou o carrinho num canto onde não estorvasse e dirigiu-se para o balcão catando as poucas moedas. O assunto chegara. A chuva bem poderia demorar mais um pouco.

- Mal dia, hoje, heim, velho?

- Pagamos a sua bebida, mas você tem que nos entreter com uma história.

- Pagam também a sopa? – pergunta o velho colocando, rapidamente, as moedas no bolso.

- Também! Mas tem que ser uma história das boas.

O velho aproxima-se da mesa.

- E será que havia a possibilidade de se conseguir algum para eu comprar um eixo novo e mandar arranjar o feixe de molas do carro do realejo?

- Fazemos uma coleta. Mas tem uma condição: Tem que ser uma história verdadeira e não dessas que você inventa para pegar as esmolas.

- Inventa e ainda tem a lata de dizer que as viveu.

- O velho é rodado!

- Qual!? É um grande mentiroso, isto sim! Tem história até na China.

- O que é que tem!? Eu mesmo já estive lá.

- Na China dos Mandarins!? Aqui, ó! O lugar mais longe que ele vai com essa geringonça dele é aqui nos nossos vizinhos da fronteira.

- Esse pelo menos, pode ir e vir.

- Mas tem a imaginação...

- Nessa, vamos e vimos, todos.

- Chega de conversa. O jogo está feito. Dê um descanso à imaginação e conta-nos uma história verdadeira, acontecida.

- A brincadeira está saindo cara. Uns copos, a sopa e o eixo das rodas.

- E o feixe de molas. – completa o velho tomando posição no centro do salão – Uma história verdadeira... – começa, fingindo procurar na memória, mas com a certeza de que sabia qual iria contar.

- Vou fiscalizar! Se lhe pegar na mentira, adeus dinheirinho.

- Boa! Ficamos só pela bebida e a sopa que já está de bom tamanho para um dia chuvoso.

- Uma história acontecida. – retoma o velho – Mas, antes de começar, pergunto se algum de vocês estaria disposto a, de uma forma ou de outra, sacrificar-se pela sua terra.

A indignação foi geral. Todos se sentiram ofendidos e, cada um por sua vez, exibiu as marcas de seus sacrifícios.

- Vê estas cicatrizes? São lembranças das torturas por que passei.

- Vê este nome aqui no bilhete de identidade? Este não sou eu.

- Vê esta tarja preta? É por um filho que perdi.

- Vê este passaporte? É falso. Senão, cá não estaria.

- Vê a tristeza do companheiro ali ao canto? É por sua netinha que desapareceu ainda há pouco e a essa hora pode estar nos calabouços da repressão.

- Aqui, todos nós, incluindo o dono da taverna, dá a sua quota de sacrifício. Cada um à sua medida.

- Uma coisa é certa, mesmo à sua medida, cada um aqui, faz mais que ficar contando histórias bobas de duendes e rainhas, aí pela praça.

O velho não retrucou. Sabia que a melhor resposta estaria na história que, de antemão, tinha a certeza de que todos ali gostariam de ouvir.

- Era uma vez... – inicia o velho com os mesmos ares com que, já há muito tempo, contava as histórias de fadas e de aventuras no exercício de sua sobrevivência. – Era uma vez um rapazote que andava pelo mundo a desenhar as pessoas. De seus pastéis, carvão, lápis e aquarelas surgiam retratos e caricaturas que eram trocados por algumas coroas que lhe garantiam o dia-a-dia e a passagem para outras paragens, já que não ficava muito tempo no mesmo sítio. Certo dia, ao retratar uma rapariga, por ela se apaixonou e dela quis fazer um retrato perfeito. Ela própria achou que estava bom o primeiro que ele havia feito, mas ele não. Quase todos os dias encontravam-se para novas tentativas. Sou testemunha de seu sofrimento na busca do detalhe que faltava para que a obra lhe satisfizesse em pleno. Mostrava-me os esboços que a todos eu achava bom mas, que fazer, se ele a via com outros olhos. Olhos de apaixonado. Trabalhava dia e noite, o coitado. Por último, já recusava encomendas, só a trabalhar no retrato da amada. Ora o queixo. Ora o nariz. A boca. Não queria seguir a estrada sem antes dar por terminado o intento. E, estrada nessa altura, só se fosse à boleia, pois a bolsa já se esvaziara. Ficar seria bom, por estar próximo a sua apaixonada. Mas para ficar havia que tornar a trabalhar e, como trabalhar se já não fazia nada de jeito? Terminar a obra, isto sim, e levá-la em pensamento para onde fosse. Não se conseguiria dizer qual era maior: a ânsia da perfeição que lhe tomara a alma ou a paixão que nutria pela rapariguinha. Paixão essa que, apesar do nosso convívio, até a esse momento, não lhes poderia dizer se era correspondida.  Ainda há poucos dias, dois homens procuraram-no com uma proposta estranha: Ele ganharia um bom dinheiro mas teria que ausentar-se da cidade por uns tempos. Eram da polícia política. Queriam que ele fizesse um retrato-falado devido ao impedimento do desenhador oficial. A testemunha ia dando-lhe as indicações que o lápis e a borracha iam transformando no rosto já tão seu conhecido. Não sabia o que sentia ao ver o retrato da amada escapando-lhe no papel. Tentou alterar as feições mas o olhar inquiridor de um agente provocou-lhe um tal frio na espinha que o fez perceber que não havia saída. Terminou o desenho. E lá estava o que tanto procurara. Os olhos. Melhor, o olhar. Uma nuance que lhe conferia um misto de medo e de esperança. Quis chorar, mas controlou-se. Não podia pôr tudo a perder. Aquele olhar de esperança assustada era de quem, à sua medida, fizera algo. Ele ainda podia fazer a sua parte também. Fingiu satisfação pelo trabalho concluído. Recebeu a paga. Agradeceu e pôs-se ao encontro da amada com quem atravessou a fronteira rumo à liberdade. E se a história não fosse tão recente, eu até diria... e viveram felizes para sempre!

 

O que ficou a fiscalizar a história ergue o dedo como que a pedir a palavra ao silêncio de contentamento que invadiu a sala ao fim da narrativa. “Muito bem! Agora vamos aos pontos nos is. Até certa altura dá para acreditar. Mas, a partir de quando a polícia o levou... só se vocês tivessem tido um encontro depois disso... e, além do mais, como você poderia saber que eles atravessaram a fronteira, sãos e salvos?”

 

A incredulidade espalha-se junto com o ranger do carrinho que o velho puxa para o centro da sala. Neste momento, todos tinham aquela esperança temerosa no olhar. O velho abre uma portinhola. Retira toda a tralha: cobertores, panelas, fogareiro... Indica o espaço vazio. “Aqui bem cabem dois mancebos. Desde que bem apaixonados.” – E, ante a satisfação de todos, conclui, com um sorriso maroto – “Cada um à sua medida!”




domingo, maio 12, 2024

Os romanos na América


Como nesta história são faladas várias línguas já extintas e, mesmo aquelas que têm reminiscência nos dias de hoje, são de difícil acesso, vou contá-la nesta, para facilitar o trabalho dos leitores (ou ouvintes) e o meu. Sem precisar legendagem.

Conta-se que, no apogeu do Império Romano, quando já tinham aberto todos os caminhos terrestres possíveis e esbarrado com o mar imenso e misterioso, o ponto mais a Oeste do Império fornecia um vinho muito apreciado pelo césar da altura, como fosse o prémio pela chegada ao fim do mundo seco. Os tempos corriam fáceis para o Império. Os viriatos já haviam sido derrotados e a rota do Mediterrâneo estava dominada. Um barco com dez tripulantes era encarregue de, a cada safra, levar o vinho para César. O comandante da tripulação fazia comércio com sarracenos e malteses negociando o vinho e repartindo os lucros para obter a conivência da tripulação. Certa vez, exagerou. O povo do Languedoc estava em festa e também comprou vinho e muito.

-          Assu! – exclamou César ao provar o vinho – O que houve com este vinho?

-          A safra foi má – começa a explicar-se o comandante, afirmando com convicção – Pouca chuva na Ibéria.

César suspeitou de tanta convicção e mandou que o vinho fosse analisado.

-          Água. – diz o responsável pela análise – Água a mais.

-          Para pouca chuva… Assu! Deveria ser água a menos. – César remói a indignação e ordena – Prendam-no! A ele e toda a tripulação. Castrem o traidor e o futuro está resolvido depois, penso no que fazer com ele. Assu!

Quando este césar dizia “Assu”, sua expressão favorita, era surpresa, boa ou má. Algo de grande lhe chamava a atenção. E ele era constantemente surpreendido pela grandiosidade das coisas pois, flor de curioso, vivia cercado de historiadores, astrónomos, matemáticos e filósofos para além da força militar de defesa. A expressão pessoal dava azo a discussões entre os eruditos. Uns defendias que era um neologismo inventado por ele próprio, outros diziam que era latim arcaico ou sânscrito. Mas todos gostavam quando traziam-lhe uma novidade e ele exclamava “Assu” como da vez que seu astrónomo lhe falou da experiência de um grego chamado Tales de Mileto que provava que a terra era um globo.

-          Assu! Isto é deveras interessante. Quer dizer que a terra é redonda?

-          E agira sobre a superfície do oceano a marcar as horas.

-          Isto já é asneira. São malucos esses gregos. Se assim fosse, amanhecíamos todos molhados. Assu, que isto é parvoíce.

-          Também acho. Ainda mais porque existem terras para além do Atlântico.

-          Assu! Isto eu não sei.

-          Um povo antigo, os Fenícios, que eram excelentes navegadores… conta-se que se aventuraram para Oeste e deram com terra. Também os Vickings…

-          Há provas?

-          O templo daquele famoso sábio hebreu, a quem é chamado Salomão, foi construído com madeiras que não existem em nenhuma floresta conhecida.

-          Assu, assu,assu! – César conjectura – Se a Terra é redonda… Gira e marca as horas com a posição do Sol… Há que descobrirmos essas terras para além mar.

-          Tal empresa não é oportuna, ó, César. – argumenta o responsável pelas finanças – Temos que conter certos gastos.

-          Há que fincar o estandarte de Roma do outro lado deste tal globo em que vivemos. A Águia de Roma conquistará novas terras e povos, se estes existirem, em todos os quadrantes desta grande bola.

-          Ó, César. – intercede o filósofo, que era sempre o encarregado pelos outros quando havia que contradizer ou repreender César – Os cofres públicos, de momento, não suportam tal ousadia.

-          Assu. – César anda de um lado para outro – O castrado! Assu! Mandem o castrado e sua tripulação de aldrabões. Poucos víveres e um barco qualquer. O mesmo que eles usavam para vender o meu vinho. E que não retornem sem boas novas.

-          Assim será. – e o filósofo torna-se ainda mais cauteloso – Mas, diga-me, ó, César, o porquê de tanto afã.

-          Ó, meu caro, você compreender-me-á. – põe a mão sobre o ombro do filósofo e segreda-lhe ao ouvido – Assim, poderei afirmar, de boca cheia: “O Sol nunca se põe no Império Romano!”

A sorte, mais que os parcos conhecimentos de navegação, levou os proscritos a bom porto em terra firme que, se ilha, era demasiadamente grande. Terra riquíssima onde o ouro aflorava ao solo, muita madeira e uma gente curiosa e hospitaleira, sem maldade alguma, que andava completamente nua.

-          Assu! – exclama o castrado, brincalhão – César não está por perto, pois não? Assu, assu, assu… - saltita como uma criança – Assu, que isto é o Paraíso! Assu, assu! – mulheres e crianças formam uma roda e riem com a estranha dança – Anda cá. – acena para um de seus homens, o que tinha mais facilidades para línguas – Pergunte para eles que terra é esta. Fale na língua de Porto Calen que é a terra mais próxima.

-          Que terra é esta? – diz o intérprete na língua dos lusitanos. Diante do silêncio, acrescenta na língua dos sarracenos – Quem são vocês? – tenta a língua D’Oc que, apesar de recente, oriunda do latim vulgar, era já muito utilizada pelos viajantes comerciantes ou artistas – Como se chama este lugar?

-          Tenta por gestos. A linguagem dos mudos. – arrisca o comandante como última tentativa.

-          Nós somos a Nação Tamoio. – responde um homem com muitas penas coloridas na cabeça – Esta terra é Pindorama. Sejam bem-vindos. – falou em língua Tupi-guarani e os romanos não perceberam nada para além de que estavam entre um povo que não lhes ia fazer mal.

Conseguir o perdão de César ou fugir para um outro lugar onde todo aquele ouro valesse, já que ali, ninguém lhe dava importância. Matarem-se uns aos outros para ficar um quinhão maior. Quedarem-se por ali mesmo pois a sorte poderia não lhes sorrir outra vez. Estes eram os pensamentos dos homens enquanto carregavam a embarcação que era pequena para tantas coisas: penas coloridas, sementes, um pedaço de madeira brasina que os da região chamavam arabutã, pedras e ouro, muito ouro. As ideias de riqueza e de perdão prevaleceram e fizeram-se ao mar. Menos o comandante que ficou no seu paraíso.

Da embarcação e seus homens, nunca mais se teve notícias. Na nova terra não deixaram nenhuma inscrição como fizeram os fenícios. Da passagem dos romanos por Pindorama só ficou a palavra “açu” que é um sufixo nominal usado por todos os povos que falam o tupi-guarani e que exprime a ideia de grandeza.


DE JAIME PARA JAIME

Caro Jaime, a saudade tem dessas coisas... inventei de fazer uma letra para o Fado Jaime no intuito de  atenuá-la um pouco, mas a inspiração não vinha. Aí, procurei um parceiro, desses que nunca se recusa a colaborar com quem quer que seja, que está sempre pronto e nunca tem “uma branca”, nenhum bloqueio literário. Pode não sair coisa boa, mas sempre sai alguma coisa e a gente vai arrumando. Afinal, assim são as parcerias. Ao fim ao cabo, o resultado foi tão bom que o parceiro até agradeceu pela oportunidade de colaborar na criação do poema.

 

DE JAIME PARA JAIME

 

Na cozinha, amigo Jaime

O teu talento é rei e guia.

Com mãos sábias, mãos de fada,

Espalha sabores, pura magia.

 

No mar é que tu te inspiras

E nas panelas, forjas teu fado.

Cada pitada é uma nota

Que soa em convite para o pecado.

 

Os teus pratos são poesia,

Em cada receita pintas um verso.

De alma tão lusitana

Mas que absorve todo o universo

 

Amigo chef, és um astro,

Não só na arte de alimentar.

Toda tua vida aquarela,

Tem a arte maior que é a de se dar

 

No Fado Jaime, a saudade

É voz que ecoa pelas lonjuras

Na memória, um doce algoz,

Tal amizade atenua as agruras.

 

Entre lutas e esperanças,
Seguimos sempre bem lado a lado.

Buscando um mundo melhor,
Vivendo a vida curtindo o fado.

 

Música: Fado Jaime, de Jaime Santos

Letra: Mané do Café (Jorge Carlos)/Chat GPT




domingo, maio 05, 2024

A cueca comunista

 

Corriam os tempos sombrios da ditadura como sombria era a rua onde dois homens cumpririam sua missão caso  o  perigo não surgisse das sombras travestido em forças da lei e da ordem. Um, jovem estudante universitário expulso por envolver-se com o movimento estudantil; o outro, advogado de meia idade já há muito engajado nas causas populares. Esperavam pelo material gráfico que seria distribuído nos portões das fábricas. O jovem, que tinha o comando da acção, fica preocupado com o nervosismo acentuado do outro.

- O que se passa, companheiro?

- Não é nada.

As sombras, nesses tempos, invadiam as cabeças e as coisas deviam ser muito bem esclarecidas.

- Ou o companheiro me diz já o que se passa ou serei forçado a suspender a operação.

- Sabe o que é? É que eu tenho o hábito de usar cuecas. Se eu saio sem cueca eu fico nervoso, sinto-me desprotegido. É como se eu estivesse nu. Não ria, não. Deve ser trauma de infância. Sabe... aquela coisa do passarinho não fugir...

- E você está sem cueca?

- Pior. Com essa mania. Na pressa, peguei uma calcinha da minha mulher. Agora. Imagina se há uma rusga... Ser preso como comunista, vá lá, mas como pervertido?!

As sombras persistem e o jovem acha a história muito mal contada.

- Deixa eu ver.

 

Vermelha. Mas com rendinhas. Pelo sim, pelo não, suspendeu-se a operação.

 

Esta história, acontecida, contou-ma o Zé.

 


domingo, abril 28, 2024

Humprey Bogart do Rossio

 


Era bonito passar pelo átrio do metro e admirar aquele desenho aquele desenho a giz, no piso. Só os menos sensíveis ou os muito apressados não diminuíam a marcha para apreciar aquele olhar enigmático do actor-personagem que uma criança em gestos fortes, todas as manhãs, colocava cores que, apesar de vivas, não lhe tiravam o ar soturno que sempre caracterizou aquele que, em tempos, arrebatou tantos corações e influenciou tantos comportamentos. À tarde, o desenho empalidecia pelas pisadas mas, pela manhã, compensava andar um pouco mais para pegar o metro no Rossio e ver a quantas andava o Humphrey que a cada dia parecia mais vivo,mais colorido e até já esboçava um sorriso alegre nada debochado ou cínico daqueles que lhe fizeram a fama. O Humphrey, a criança, a lata e o tilintar das moedas eram o prenúncio refrescante de um bom dia de trabalho. A pausa meio a tantas correrias. Desviei o  meu trajecto durante duas semanas até que houve uma alagação e o Humphrey apagou-se por completo. Ainda passei pelo Rossio algumas vezes na esperança de o ver novamente. Nada. Um dia, deparei com a criança sentada na calçada rabiscando o chão com um caco de tijolo, sem a lata e entristecida. Indaguei-lhe: “Então, e o Humphrey?!” “Pois é, doutor, a estação encheu-se d’água e eu fiquei à nora.” “Por que não retoma o trabalho?” A criança, esfregando a mão sobre os rabiscos, respondeu aborrecida: “O camone que fez já bazou há muito tempo.” Fui pego de surpresa. Fiquei tão indignado que despejei meu descontentamento com uma veemência tão grande e em tão alto tom que logo juntou-se uma roda de curiosos:”Com que então não foste tu quem fez o Humphrey... eu, que falava p’ra todo mundo a teu respeito... e as moedas... não imagina a pipa de massa que deixei na tua lata... e vens me dizer que não foste tu... saíste-me um grande aldrabão, isto, sim...” A criança assustada, com a mão em atitude de defesa, prevendo uma estalada, olha em volta como a procurar uma brecha entre os curiosos e arremata,antes de pisgar-se: “Eh, doutor! E o trabalho de restauro não vale nada, é?”

 

quarta-feira, abril 24, 2024

O LADRÃO DE SONHOS

 

O LADRÃO DE SONHOS

 

Era-lhe dura a vida. Trabalho ainda não faltava. Faltava o dinheiro para vida melhor. Pelo menos, para assentar a cabeça e trabalhar mais, mas naquilo que era de gosto. E, como o de gosto lhe regalava a vida, trabalhava. Trabalhava no que não rendia nem para a renda, mas rendia na esperança de um dia concluir a obra de gosto mesmo que não se lhe rendesse. Bastava-lhe o prazer de acabaram e dizer: é bom, gosto disto! Buscava. Buscava na Natureza, nas histórias, na História, nos contos, poemas e através de fantasias e variações sobre outros temas. Parcerias, não, pois os seus dois trabalhos transformaram-no num solitário – o trabalho de acompanhar que, ainda que escasseasse no mercado devido às novas tecnologias, não lhe faltava graças à sua polivalência que lhe permitia tanto executar um violão em gravação de estúdio, quanto fazer a percussão em uma orquestra de Mambo ou mesmo substituir a tuba na fanfarra do bairro e o trabalho que lhe acompanhava mal terminava o outro., no caminho para o quarto, na solidão da pensão, no café da esquina, a perambular pela cidade, nos campos, nas tournées… sempre a tecer os sons e espaços à procura do que seria a remissão do pecado de tanto trabalhar. Concentração, meditação, embriaguez, laboratório, nenhum mecanismo lhe proporcionava a inspiração para a obra que satisfizesse a sua exigência. E, só a sua, já que nenhum produto era tornado público; Se não é bom para mim, não será para ninguém! pensava nos raros momentos em que a cabeça não estava ocupada pelos sons e silêncios que nem sequer chegavam ao papel.

Um sonho.

Lindo tema. Não precisava nem desenvolvê-lo. Estava lá. Todo. Sentiu vontade de passá-lo para a pauta mas, podia esperar. Havia que desfrutar. A felicidade. A missão cumprida. Há vagar. Seria só dele. Por algum tempo só ele ouviria aquela prenda abençoada por Morfeu.

Mais uma esquina da vida.

O tema chegava-lhe agora pelos ouvidos. Apressou-se na direcção da loja de discos de onde vinha os acordes que nunca trauteara ou assobiara. Como? Uma peta do inconsciente. Poderia ser algo que já ouvira em outros tempos. Ainda bem que não fui registá-la. Que vexame! Queria saber quem fizera coisa tão bela. “Foi o Maestro” – disse o vendedor da loja demonstrando uma surpresa simpática e completou com simpatia: “Pois não é que o Maestro agora está a lançar-se como compositor. É a sua primeira obra de autoria.”

O Maestro!

A fama do regente era tal que o artigo e a função bastavam-lhe como epíteto. O Maestro. Não conhecia o maestro pessoalmente tampouco tivera ocasião de trabalhar sob a batuta deste. Muito conhecia de sua vida e de seus feitos como tantas pessoas pois a fama do maestro era invulgar e disputava a média com grandes vedetas da música pop e do desporto.

Intriga.

Ou ele e o maestro ”beberam” da mesma fonte ou tratava-se de um caso de grande coincidência o que, legalmente, nunca serviria de argumento – a criação musical é livre, a Lei, não.

Foi só um sonho.

A vida continuava. Dura. Cada vez mais.

Sonho.

Completo. Só melodia, harmonia, ritmo, nenhuma imagem, três andamentos perfeitos e o título: Soneto Sinfónico. Não. Não poderia ser uma brincadeira. Lembrar-se-ia se já tivesse escutado algo tão arrojado. Era seu método de trabalho. Dormir. Sonhar. Duas coincidências? Impossível! “Essa é minha…” – pensou, brincalhão – “peguei primeiro.” E, com toda presteza, colocou-a na pauta. “Meu passarinho!” Mas, seria isso uma inspiração? – já a caminho da sociedade que protege os direitos dos autores – Mas, também não é assim, mesmo quando estamos acordados? Ela vem-nos quando menos esperamos. Não era altura para conflitos interiores. “é minha e pronto!” “Que coincidência.” – disse o responsável pelo registo – “Não faz muito tempo, registei uma partitura com esse mesmo título ou parecido. Deixe cá ver. É, é o mesmo, Soneto Sinfónico. Mais uma do Maestro. Foi… há precisamente uma semana.” E, com todo o tacto diplomático exigido em tais circunstâncias, acrescentou – “Mude o título e já está!” “Deixe estar, obrigado.” Saiu da secção com a certeza de que se quisesse obter o registo teria que alterar toda a estrutura para além do título. E a certeza confirmou-se. Lá estava nas rádios, tevês e lojas: todas as notas, todos os compassos… idênticos… as pausas. Era a coqueluche do momento. O Soneto Sinfónico. O seu passarinho.

Os sonhos tornaram-se mais constantes. Já se dava ao luxo de escolher. O trabalho assim era fácil, sem sacrifícios. Bastava fechar os olhos. Um cochilo, uma suite… Árdua era a tarefa de transição. Sabia que tinha que ser rápido. Dias e dias a escrever negligenciando o outro trabalho, o das rendas. E as poucas economias esvaziavam-se. Já estava acostumado a conviver com a pobreza, mas a perspectiva de chegar às raias da miséria, assustava-o. Ainda assim, não parava. Era a sua grande oportunidade. Os últimos compassos foram transcritos já ao balcão do registo. Ao traçar a barra dupla, pergunta, quase que sem querer, pelo maestro. “Tem novidades?” “Esse não para” – disse o funcionário pegando um maço de folhas – “hoje mesmo, pela manhã, trouxe esta colectânea. Veja.” Bastou uma vista d’olhos sobre os sete primeiros compassos para saber que o seu registo seria adiado, ainda uma vez.

O maestro era mais rápido. Tinha modernos programas de computador e uma grande equipa a qual, mal acordava, punha em acção. Em pouco tempo O Maestro estava com novo álbum na praça. Com tudo. Até os sonhos que ele desprezara.

De fome ainda não padecia, mas já perdera o quarto da pensão. Porém o catre de agora não impedira os sonhos. O único prazer. Dormir era o seu único trabalho. Não transcrevia mais. Para quê? Qualquer coisa que agora lançasse teria sempre a marca do outro. O estilo inconfundível do Maestro. Estava acabado. Ele estava acabado, mas queria ver o outro de perto. Olhos nos olhos e definir o que sentia. Parecia ódio e era a única coisa que o movia. A oportunidade surgiu numa apresentação pública da obra do Maestro, pela Orquestra Metropolitana, regida pelo próprio. Antes da conferência de imprensa, cruzaram-se. o elogio que lhe saiu da boca vinha-lhe da alma. Pejava sinceridade. “Bela obra! Bravo Maestro!” O obrigado foi o mesmo dirigido a qualquer desconhecido. Realmente o maestro não o conhecia. Às perguntas de praxe de como era o método de trabalho, de onde vinha a inspiração, a que atribuía o gosto do grande público por sua obra e essas coisas, a resposta, que revelava uma modéstia desmedida: “Eu não faço nada. Eu roubo. Roubo os sonhos. Assim como um pintor coloca o inconsciente colectivo na tela, eu coloco-os na pauta. Sou um ladrão de sonhos.” “Filho da puta! Ainda confessa.” Era ódio, tinha a certeza. O ódio solitário.

O catre e já a fome.

O sonho dos sonhos. O estilo era o mesmo, mas a grandiosidade superava tudo que já havia sonhado. Entra na grande vivenda do maestro com todas as facilidades que os sonhos concedem. Para à porta do quarto onde o maestro dormia vestido de fraque, embriagado de mais uma fausta noitada. O maestro olha-o como se já o conhecesse de muito. “Foi a coisa mais linda que tu já fizeste.” E acrescenta, com uma intimidade debochada. “Pena que não possas representá-la” “Posso sim. Posso fazer dela uma elegia. Uma ode. Vou chamá-la” – com as mãos no pescoço do outro – “Requiém O Maestro” – aperta – “a minha homenagem post-mortem ao Ladrão de Sonhos.” – aperta até aplacar todo o ódio. Acorda. Cata algumas moedas atiradas pelos noctívagos e dirige-se ao café, um pouco frustrado por ter sido só um sonho, mas feliz por ter sonhado. O rádio do café anunciava em edição extraordinária: “Morte misteriosa leva-nos o Ladrão de Sonhos…” A notícia entristeceu a quase todos.

 

Esta história eu sonhei. Por isso, fico meio sem jeito de assiná-la, pois não sei até que ponto podemo-nos assumir como autor intelectual de uma obra na qual não utilizamos o intelecto. Mas, por via das dúvidas, vou creditar a mim a sua autoria, assiná-la e registá-la pois… nunca se sabe…

 

A todos que pugnam pelos direitos dos autores.

Jorge Carlos

           



Este conto foi para o papel em Lisboa, no ano de 1999. A exemplo de Dona Peta e com o incentivo de José Saramago peguei gosto pela escrita e desatei a contar histórias que foram colocadas em livro em 2002. 


sexta-feira, abril 05, 2024

Luz nas trevas

Na minha primeira exposição individual (Viva Café), no Banacre, no ano de 1983, dois quadros foram adquiridos pela Secretaria de Indústria e Comércio do Estado do Acre. O secretário Adalberto Aragão escolheu justo os dois que eu mais gostava, o “Homem de Fumaça” e o “Lux in Tenebris”, dos quais eu não queria abrir mão e só aceitei a venda por se tratar de um órgão público e assim, quando eu quisesse mostrá-los, estariam sempre disponíveis. Quando fui apresentá-los à minha mãe que nos visitava vindo de longe, na parede só estava o “Homem de Fumaça”, o “Lux in Tenebris” tinha ido para as trevas. Procurei alguma luz e descobri que o Aragão quando se despediu da Secretaria para assumir a Prefeitura de Rio Branco o havia presenteado ao seu motorista, por quem, segundo o próprio funcionário, ele tinha grande estima. A contragosto, o motorista entregou-me o quadro. Sem saber o que fazer, fui ficando com ele e procurando exibi-lo sempre que possível. Nomeadamente, na coletiva de inauguração da AAPA (Associação dos Artistas Plásticos do Acre) e nas coletivas para a Noite Acreana no Circo Voador, no Rio de Janeiro e da inauguração do Parque Chico Mendes, em São Paulo. Acabei por levar a obra para Portugal, onde morei por vinte anos. Nas andanças, a cartolina sobre a qual está a pintura feita com café se danificou, mas nada que impedisse que fosse resgatada por minha filha Maiara, que lhe proporcionou uma moldura para proteção.

Eliana e sua irmã Isabel, não sem um tom de pilhéria, alertaram-me que o quadro não mais me pertence e que o certo seria devolvê-lo ao Estado. Pronto para a devolução.

                       

quinta-feira, fevereiro 08, 2024

SBAT, UM PATRIMÔNIO CARINHO

No ano de 1978, montei a peça teatral Pluft, O Fantasminha. Foi meu primeiro (e um dos poucos) que tinha como objetivo ganhar dinheiro. O Acre, àquela altura, era muito distante... Mas havia a consciência e o conhecimento de que, geralmente, dez por cento da bilheteria caberia a quem escreveu a obra, no caso, Maria Clara Machado. Parti para o Rio de Janeiro. Foram quinze dias de atoleiro em atoleiro na fatídica BR 364. Entrei no Teatro Tablado todo enlameado, o que fez a autora arregalar os olhos junto com um sorriso piedoso. Desenrolei o saco plástico sujo só por fora e entreguei a ela o cartaz que o Grupo Sacy, do Acre havia preparado com toda atenção. Ela adorou saber que tão longe na Amazônia cuidaram tão bem de um filho seu, dos mais queridos. A surpresa maior foi quando desenrolei o canudo de plástico menor com o Direito Autoral. Depois de ouvir a aventura que vivi para chegar ao Tablado, ela disse que não receberia. Abriu mão sem protocolos e orientou-me para que procurasse a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais para que outra dessa não acontecesse.

Resumo: Fiquei sendo o representante da SBAT para o Estado do Acre, onde o fazer teatral, predominantemente amador, não permitia muitas arrecadações, mas se beneficiava com outros atributos da Sociedade, como a procura de textos, liberação... e a Revista, que chegava regularmente sempre com artigos interessantes.

De representante passei a sócio, pois inventei de escrever também. Se paguei duas anuidades foi muito. Mas as peças que pus em guarda da Sociedade, lá ficaram guardadas e poderei resgatar até a que já havia dado por perdida.

Tantas voltas deu o Capitalismo e as estradas, que a SBAT e eu andamos mal das pernas. Ela precisando da anuidade dos sócios e eu precisando de 200 reais para pagar a minha anuidade. Sim, porque depois de todo aperreio que a Sociedade fundada por Chiquinha Gonzaga e outros intrépidos quixotes passou para resistir desde 1917 e ainda assim guarda as minhas coisas... É o mínimo que posso fazer. E seria bom que todos os sócios mantivessem em dia as anuidades. Mesmo que com todas essas novidades midiáticas (a SBAT também está se modernizando) não veja necessidade. É uma questão de carinho histórico.

Espero que pelo menos a maioria possa abrir mão de 200 reais anuais. Eu não os tenho consolidados, são muito esporádicos (ainda não vi a cara do Lobo Guará), mas, em conversa com a Eliana, tive a ideia de desenhar uma figura da Casa a cada ano e colocar à venda. O valor: o da anuidade (que por ora é 200).

O primeiro é este, a Chiquinha Gonzaga. (Atenção, não é a Regina Duarte. A atriz é que ficou muito parecida.)

Aceito sugestão para quem possa ser a figura retratada no próximo ano.