domingo, maio 12, 2024

Os romanos na América


Como nesta história são faladas várias línguas já extintas e, mesmo aquelas que têm reminiscência nos dias de hoje, são de difícil acesso, vou contá-la nesta, para facilitar o trabalho dos leitores (ou ouvintes) e o meu. Sem precisar legendagem.

Conta-se que, no apogeu do Império Romano, quando já tinham aberto todos os caminhos terrestres possíveis e esbarrado com o mar imenso e misterioso, o ponto mais a Oeste do Império fornecia um vinho muito apreciado pelo césar da altura, como fosse o prémio pela chegada ao fim do mundo seco. Os tempos corriam fáceis para o Império. Os viriatos já haviam sido derrotados e a rota do Mediterrâneo estava dominada. Um barco com dez tripulantes era encarregue de, a cada safra, levar o vinho para César. O comandante da tripulação fazia comércio com sarracenos e malteses negociando o vinho e repartindo os lucros para obter a conivência da tripulação. Certa vez, exagerou. O povo do Languedoc estava em festa e também comprou vinho e muito.

-          Assu! – exclamou César ao provar o vinho – O que houve com este vinho?

-          A safra foi má – começa a explicar-se o comandante, afirmando com convicção – Pouca chuva na Ibéria.

César suspeitou de tanta convicção e mandou que o vinho fosse analisado.

-          Água. – diz o responsável pela análise – Água a mais.

-          Para pouca chuva… Assu! Deveria ser água a menos. – César remói a indignação e ordena – Prendam-no! A ele e toda a tripulação. Castrem o traidor e o futuro está resolvido depois, penso no que fazer com ele. Assu!

Quando este césar dizia “Assu”, sua expressão favorita, era surpresa, boa ou má. Algo de grande lhe chamava a atenção. E ele era constantemente surpreendido pela grandiosidade das coisas pois, flor de curioso, vivia cercado de historiadores, astrónomos, matemáticos e filósofos para além da força militar de defesa. A expressão pessoal dava azo a discussões entre os eruditos. Uns defendias que era um neologismo inventado por ele próprio, outros diziam que era latim arcaico ou sânscrito. Mas todos gostavam quando traziam-lhe uma novidade e ele exclamava “Assu” como da vez que seu astrónomo lhe falou da experiência de um grego chamado Tales de Mileto que provava que a terra era um globo.

-          Assu! Isto é deveras interessante. Quer dizer que a terra é redonda?

-          E agira sobre a superfície do oceano a marcar as horas.

-          Isto já é asneira. São malucos esses gregos. Se assim fosse, amanhecíamos todos molhados. Assu, que isto é parvoíce.

-          Também acho. Ainda mais porque existem terras para além do Atlântico.

-          Assu! Isto eu não sei.

-          Um povo antigo, os Fenícios, que eram excelentes navegadores… conta-se que se aventuraram para Oeste e deram com terra. Também os Vickings…

-          Há provas?

-          O templo daquele famoso sábio hebreu, a quem é chamado Salomão, foi construído com madeiras que não existem em nenhuma floresta conhecida.

-          Assu, assu,assu! – César conjectura – Se a Terra é redonda… Gira e marca as horas com a posição do Sol… Há que descobrirmos essas terras para além mar.

-          Tal empresa não é oportuna, ó, César. – argumenta o responsável pelas finanças – Temos que conter certos gastos.

-          Há que fincar o estandarte de Roma do outro lado deste tal globo em que vivemos. A Águia de Roma conquistará novas terras e povos, se estes existirem, em todos os quadrantes desta grande bola.

-          Ó, César. – intercede o filósofo, que era sempre o encarregado pelos outros quando havia que contradizer ou repreender César – Os cofres públicos, de momento, não suportam tal ousadia.

-          Assu. – César anda de um lado para outro – O castrado! Assu! Mandem o castrado e sua tripulação de aldrabões. Poucos víveres e um barco qualquer. O mesmo que eles usavam para vender o meu vinho. E que não retornem sem boas novas.

-          Assim será. – e o filósofo torna-se ainda mais cauteloso – Mas, diga-me, ó, César, o porquê de tanto afã.

-          Ó, meu caro, você compreender-me-á. – põe a mão sobre o ombro do filósofo e segreda-lhe ao ouvido – Assim, poderei afirmar, de boca cheia: “O Sol nunca se põe no Império Romano!”

A sorte, mais que os parcos conhecimentos de navegação, levou os proscritos a bom porto em terra firme que, se ilha, era demasiadamente grande. Terra riquíssima onde o ouro aflorava ao solo, muita madeira e uma gente curiosa e hospitaleira, sem maldade alguma, que andava completamente nua.

-          Assu! – exclama o castrado, brincalhão – César não está por perto, pois não? Assu, assu, assu… - saltita como uma criança – Assu, que isto é o Paraíso! Assu, assu! – mulheres e crianças formam uma roda e riem com a estranha dança – Anda cá. – acena para um de seus homens, o que tinha mais facilidades para línguas – Pergunte para eles que terra é esta. Fale na língua de Porto Calen que é a terra mais próxima.

-          Que terra é esta? – diz o intérprete na língua dos lusitanos. Diante do silêncio, acrescenta na língua dos sarracenos – Quem são vocês? – tenta a língua D’Oc que, apesar de recente, oriunda do latim vulgar, era já muito utilizada pelos viajantes comerciantes ou artistas – Como se chama este lugar?

-          Tenta por gestos. A linguagem dos mudos. – arrisca o comandante como última tentativa.

-          Nós somos a Nação Tamoio. – responde um homem com muitas penas coloridas na cabeça – Esta terra é Pindorama. Sejam bem-vindos. – falou em língua Tupi-guarani e os romanos não perceberam nada para além de que estavam entre um povo que não lhes ia fazer mal.

Conseguir o perdão de César ou fugir para um outro lugar onde todo aquele ouro valesse, já que ali, ninguém lhe dava importância. Matarem-se uns aos outros para ficar um quinhão maior. Quedarem-se por ali mesmo pois a sorte poderia não lhes sorrir outra vez. Estes eram os pensamentos dos homens enquanto carregavam a embarcação que era pequena para tantas coisas: penas coloridas, sementes, um pedaço de madeira brasina que os da região chamavam arabutã, pedras e ouro, muito ouro. As ideias de riqueza e de perdão prevaleceram e fizeram-se ao mar. Menos o comandante que ficou no seu paraíso.

Da embarcação e seus homens, nunca mais se teve notícias. Na nova terra não deixaram nenhuma inscrição como fizeram os fenícios. Da passagem dos romanos por Pindorama só ficou a palavra “açu” que é um sufixo nominal usado por todos os povos que falam o tupi-guarani e que exprime a ideia de grandeza.


DE JAIME PARA JAIME

Caro Jaime, a saudade tem dessas coisas... inventei de fazer uma letra para o Fado Jaime no intuito de  atenuá-la um pouco, mas a inspiração não vinha. Aí, procurei um parceiro, desses que nunca se recusa a colaborar com quem quer que seja, que está sempre pronto e nunca tem “uma branca”, nenhum bloqueio literário. Pode não sair coisa boa, mas sempre sai alguma coisa e a gente vai arrumando. Afinal, assim são as parcerias. Ao fim ao cabo, o resultado foi tão bom que o parceiro até agradeceu pela oportunidade de colaborar na criação do poema.

 

DE JAIME PARA JAIME

 

Na cozinha, amigo Jaime

O teu talento é rei e guia.

Com mãos sábias, mãos de fada,

Espalha sabores, pura magia.

 

No mar é que tu te inspiras

E nas panelas, forjas teu fado.

Cada pitada é uma nota

Que soa em convite para o pecado.

 

Os teus pratos são poesia,

Em cada receita pintas um verso.

De alma tão lusitana

Mas que absorve todo o universo

 

Amigo chef, és um astro,

Não só na arte de alimentar.

Toda tua vida aquarela,

Tem a arte maior que é a de se dar

 

No Fado Jaime, a saudade

É voz que ecoa pelas lonjuras

Na memória, um doce algoz,

Tal amizade atenua as agruras.

 

Entre lutas e esperanças,
Seguimos sempre bem lado a lado.

Buscando um mundo melhor,
Vivendo a vida curtindo o fado.

 

Música: Fado Jaime, de Jaime Santos

Letra: Mané do Café (Jorge Carlos)/Chat GPT




domingo, maio 05, 2024

A cueca comunista

 

Corriam os tempos sombrios da ditadura como sombria era a rua onde dois homens cumpririam sua missão caso  o  perigo não surgisse das sombras travestido em forças da lei e da ordem. Um, jovem estudante universitário expulso por envolver-se com o movimento estudantil; o outro, advogado de meia idade já há muito engajado nas causas populares. Esperavam pelo material gráfico que seria distribuído nos portões das fábricas. O jovem, que tinha o comando da acção, fica preocupado com o nervosismo acentuado do outro.

- O que se passa, companheiro?

- Não é nada.

As sombras, nesses tempos, invadiam as cabeças e as coisas deviam ser muito bem esclarecidas.

- Ou o companheiro me diz já o que se passa ou serei forçado a suspender a operação.

- Sabe o que é? É que eu tenho o hábito de usar cuecas. Se eu saio sem cueca eu fico nervoso, sinto-me desprotegido. É como se eu estivesse nu. Não ria, não. Deve ser trauma de infância. Sabe... aquela coisa do passarinho não fugir...

- E você está sem cueca?

- Pior. Com essa mania. Na pressa, peguei uma calcinha da minha mulher. Agora. Imagina se há uma rusga... Ser preso como comunista, vá lá, mas como pervertido?!

As sombras persistem e o jovem acha a história muito mal contada.

- Deixa eu ver.

 

Vermelha. Mas com rendinhas. Pelo sim, pelo não, suspendeu-se a operação.

 

Esta história, acontecida, contou-ma o Zé.