terça-feira, julho 11, 2017

Trớ trêu

Nunca entrara no quarto do filho e só percebeu isto no momento em que se apanhou percorrendo com o indicador da mão direita os objetos do unigênito que partira no dia anterior deixando uma saudade descoberta pela ponta do dedo.

Nos sessenta anos vividos, por quatro vezes ganhou o dinheiro que lhe permitiu viver sem dores de cabeça: para a casa e o casamento, para a montagem do pequeno empório gerido pela mulher e para custear os estudos do filho que preferiu fazer a universidade no estrangeiro. Agora, depois de muito tempo, ele voltaria à mesa, mas para ganhar para ele próprio. Um dinheiro só para si, para gastar com o que lhe viesse à cabeça. Olhando o globo de mesa do filho, decidiu-se que o seu prêmio também seria uma viagem a outro país. Com um tapa fez o globo girar e, de olhos fechados, estancou o mundo com a ponta do mesmo dedo com que pela quinta e última vez acionaria o gatilho.

Se ocupar a mente não fosse tão inconveniente naquele momento, talvez sua cabeça vazia fosse invadida pela lembrança da primeira vez, quando na loucura da guerra e da puberdade, atirou-se para o revólver nas mãos do juiz, mal este acabara de girar o tambor... Não quis o quinhão que lhe coube. Jogou para o alto o monte de notas bêbadas. O que fez com que ele passasse a ser conhecido como o menino que fez chover dinheiro. Poderia também se lembrar da segunda vez, quando, nas dúvidas e incertezas do fim da guerra e da adolescência, a namorada ficou grávida. Ou da terceira vez ao buscar capital de giro para o negócio e acabou se tornando uma lenda viva no circo da morte ao jogar com três balas no tambor. Tornou-se bem vindo e as portas lhe estariam abertas sempre que quisesse e pudesse. Demorou, até que o filho inventou de estudar fora...  a quarta e logo a quinta e última.

È só uma questão de alinhamento. A espoleta fica na frente do percussor que recebe e transmite a ação do cão. Como não houve o alinhamento, ele tomou o avião rumo à cidade que lhe surgiu sob a polpa do dedo, Buenos Aires, da qual nunca tinha ouvido falar. Argentina, sim, conhecia bem por conta do tango e do futebol.

A escala na cidade do Rio de Janeiro teve que ser demorada devido a uma avaria na aeronave. No caminho para o hotel, apontava o dedo para tudo de bonito que via e alguém da companhia nomeava o espanto: Maracanã. Sambódromo. Candelária. Municipal. Aterro. Pão de Açúcar. Corcovado... Chegou a se lamentar do mundo não ter parado ali. Do hotel saiu para aproveitar a tarde que ganhara de brinde. Copacabana. De pé no Calçadão, olha o mar, em êxtase. Leva a mão direita à cabeça e cai de joelhos. O dedo na têmpora como que a apontar o espanto do vazio meditativo. A beleza do nada.

No outro dia, o avião partiu com um passageiro a menos e uma pequena nota no jornal de bordo: Mais uma vítima de bala perdida.


                                                                                                                 Petrópolis, 10 de julho de 2017