quarta-feira, julho 12, 2017
terça-feira, julho 11, 2017
Trớ trêu
Nunca entrara no quarto
do filho e só percebeu isto no momento em que se apanhou percorrendo com o
indicador da mão direita os objetos do unigênito que partira no dia anterior
deixando uma saudade descoberta pela ponta do dedo.
Nos sessenta anos
vividos, por quatro vezes ganhou o dinheiro que lhe permitiu viver sem dores de
cabeça: para a casa e o casamento, para a montagem do pequeno empório gerido
pela mulher e para custear os estudos do filho que preferiu fazer a
universidade no estrangeiro. Agora, depois de muito tempo, ele voltaria à mesa,
mas para ganhar para ele próprio. Um dinheiro só para si, para gastar com o que
lhe viesse à cabeça. Olhando o globo de mesa do filho, decidiu-se que o seu
prêmio também seria uma viagem a outro país. Com um tapa fez o globo girar e,
de olhos fechados, estancou o mundo com a ponta do mesmo dedo com que pela
quinta e última vez acionaria o gatilho.
Se ocupar a mente não
fosse tão inconveniente naquele momento, talvez sua cabeça vazia fosse invadida
pela lembrança da primeira vez, quando na loucura da guerra e da puberdade, atirou-se
para o revólver nas mãos do juiz, mal este acabara de girar o tambor... Não
quis o quinhão que lhe coube. Jogou para o alto o monte de notas bêbadas. O que
fez com que ele passasse a ser conhecido como o menino que fez chover dinheiro.
Poderia também se lembrar da segunda vez, quando, nas dúvidas e incertezas do
fim da guerra e da adolescência, a namorada ficou grávida. Ou da terceira vez
ao buscar capital de giro para o negócio e acabou se tornando uma lenda viva no
circo da morte ao jogar com três balas no tambor. Tornou-se bem vindo e as
portas lhe estariam abertas sempre que quisesse e pudesse. Demorou, até que o
filho inventou de estudar fora... a
quarta e logo a quinta e última.
È só uma questão de
alinhamento. A espoleta fica na frente do percussor que recebe e transmite a
ação do cão. Como não houve o alinhamento, ele tomou o avião rumo à cidade que
lhe surgiu sob a polpa do dedo, Buenos Aires, da qual nunca tinha ouvido falar.
Argentina, sim, conhecia bem por conta do tango e do futebol.
A
escala na cidade do Rio de Janeiro teve que ser demorada devido a uma avaria na
aeronave. No caminho para o hotel, apontava o dedo para tudo de bonito que via
e alguém da companhia nomeava o espanto: Maracanã. Sambódromo. Candelária.
Municipal. Aterro. Pão de Açúcar. Corcovado... Chegou a se lamentar do mundo
não ter parado ali. Do hotel saiu para aproveitar a tarde que ganhara de
brinde. Copacabana. De pé no Calçadão, olha o mar, em êxtase. Leva a mão
direita à cabeça e cai de joelhos. O dedo na têmpora como que a apontar o espanto do
vazio meditativo. A beleza do nada.
No
outro dia, o avião partiu com um passageiro a menos e uma pequena nota no
jornal de bordo: Mais uma vítima de bala perdida.
Petrópolis,
10 de julho de 2017
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