quarta-feira, setembro 13, 2017

Vi num cartório

Ninguém me contou, vi com meus próprios olhos. Estava à espera de um amigo que fora tratar de uns assuntos quando presenciei um pai, com uma criança de colo, no colo, procedendo o assentamento de registro de nascimento do filho. A mãe estava de pé à porta da sala e quando em vez arriscava uma olhadela para a direção do balcão.
- Nome da criança?
- Euvo Moreira da Silva.
- Como?
- Moreira da Silva.
- O primeiro nome.
- Trouxe escrito aqui.
No papel estava escrito com letras bem legíveis o primeiro nome, EWWO. O tabelião leu Evo. Estiquei o ouvido antevendo um entrevero e nada melhor para passar o tempo que uma boa pendenga. Lá com os outros! O pai disse não. O funcionário leu fazendo uma ginástica com a garganta, Euuo. Não?
- É a junção dos nomes de dois compadres meus. Euler e Ivo. Mas eu quero com dâblius...
Imaginei que a situação pudesse descambar para a baixaria, tipo: O filho é meu, ponho o nome que quiser e como quiser... Mas, não. O pai estava tranquilo e, de certo modo até bem preparado para a discussão.
- ... ou melhor, duplos vês.
- Mas o senhor há de convir que ou se tem som de u ou se tem som de vê.
- E o William Waack?
- Hein?!
- O do telejornal. Se diz U i liam Vác.
- Ah, mas é porque o nome é inglês e o sobrenome é alemão. A pronúncia...
- Mas o dono do nome e do sobrenome, que eu saiba, é brasileiro. Se o pai dele que, pelos vistos é alemão quisesse para o filho um nome brasileiro ia buscar o correlativo do Willheim alemão, que eu andei a me inteirar na tal da internet, que é Guilherme, mas como aqui se gosta de se fazer de conta que é americano, ele pôs o Guilherme à maneira inglesa, nem aportuguesou com o u! O Waack não dá pra aportuguesar pra não dar vaca...
- É nome de família. É alemão e...
- Mas o sujeito é brasileiro, de São Paulo. Ele faz de conta que é inglês ou americano e alemão.
- Cavalheiro! Tudo é um faz de conta. Até as letrinhas. Ora, faz de conta que é u, ora...
- Então tá! Faz de conta que o meu compadre Euler é inglês e o compadre Ivo é alemão.

Mais, não posso contar, pois não vi. Meu amigo saiu às pressas aborrecido com os seus negócios. Corri atrás dele e esbarrei no ombro da mãe que continuava à espera.

- Desculpa!

terça-feira, setembro 12, 2017

Cinco pesos por error

Em Cuba, até à altura em que lá fomos, havia duas moedas. O peso cubano (CUP) também chamada moeda nacional, e o peso conversível (CUC), que é a moeda que os visitantes devem utilizar e que custava vinte e cinco vezes o valor da nacional e praticada nas atividades turísticas. Como íamos ficar lá por muito tempo, Eliana e eu usávamos as duas para poder controlar os gastos, principalmente com a alimentação, já que não conseguíamos escapar dos CUCs com a habitação e o transporte intercidades.
Ao cruzarmos com um grupo de músicos, uma deles ao sentir a nossa receptividade, deu-nos uma atenção com uma canção bem conhecida. Perguntamos onde eles se apresentavam, em que bar ou restaurante e ele disse que tinham a licença para divulgação cultural nas ruas com o devido peditório. Rapidamente tirei do bolso uma nota de cinco pesos, em moeda nacional. Automaticamente, o homem espalmou a mão em gesto de recusa indignada e avançou rapidamente para a direção dos colegas que o esperavam à esquina. Com alguns passos peguei-o pelo braço e disse: Nós não somos turistas! Estamos aqui com visto cultural. Somos artistas também. 

Que alegria, quando ele aceitou a nota com o maior prazer e nos deu um abraço fraternal.




terça-feira, julho 11, 2017

Trớ trêu

Nunca entrara no quarto do filho e só percebeu isto no momento em que se apanhou percorrendo com o indicador da mão direita os objetos do unigênito que partira no dia anterior deixando uma saudade descoberta pela ponta do dedo.

Nos sessenta anos vividos, por quatro vezes ganhou o dinheiro que lhe permitiu viver sem dores de cabeça: para a casa e o casamento, para a montagem do pequeno empório gerido pela mulher e para custear os estudos do filho que preferiu fazer a universidade no estrangeiro. Agora, depois de muito tempo, ele voltaria à mesa, mas para ganhar para ele próprio. Um dinheiro só para si, para gastar com o que lhe viesse à cabeça. Olhando o globo de mesa do filho, decidiu-se que o seu prêmio também seria uma viagem a outro país. Com um tapa fez o globo girar e, de olhos fechados, estancou o mundo com a ponta do mesmo dedo com que pela quinta e última vez acionaria o gatilho.

Se ocupar a mente não fosse tão inconveniente naquele momento, talvez sua cabeça vazia fosse invadida pela lembrança da primeira vez, quando na loucura da guerra e da puberdade, atirou-se para o revólver nas mãos do juiz, mal este acabara de girar o tambor... Não quis o quinhão que lhe coube. Jogou para o alto o monte de notas bêbadas. O que fez com que ele passasse a ser conhecido como o menino que fez chover dinheiro. Poderia também se lembrar da segunda vez, quando, nas dúvidas e incertezas do fim da guerra e da adolescência, a namorada ficou grávida. Ou da terceira vez ao buscar capital de giro para o negócio e acabou se tornando uma lenda viva no circo da morte ao jogar com três balas no tambor. Tornou-se bem vindo e as portas lhe estariam abertas sempre que quisesse e pudesse. Demorou, até que o filho inventou de estudar fora...  a quarta e logo a quinta e última.

È só uma questão de alinhamento. A espoleta fica na frente do percussor que recebe e transmite a ação do cão. Como não houve o alinhamento, ele tomou o avião rumo à cidade que lhe surgiu sob a polpa do dedo, Buenos Aires, da qual nunca tinha ouvido falar. Argentina, sim, conhecia bem por conta do tango e do futebol.

A escala na cidade do Rio de Janeiro teve que ser demorada devido a uma avaria na aeronave. No caminho para o hotel, apontava o dedo para tudo de bonito que via e alguém da companhia nomeava o espanto: Maracanã. Sambódromo. Candelária. Municipal. Aterro. Pão de Açúcar. Corcovado... Chegou a se lamentar do mundo não ter parado ali. Do hotel saiu para aproveitar a tarde que ganhara de brinde. Copacabana. De pé no Calçadão, olha o mar, em êxtase. Leva a mão direita à cabeça e cai de joelhos. O dedo na têmpora como que a apontar o espanto do vazio meditativo. A beleza do nada.

No outro dia, o avião partiu com um passageiro a menos e uma pequena nota no jornal de bordo: Mais uma vítima de bala perdida.


                                                                                                                 Petrópolis, 10 de julho de 2017