sexta-feira, maio 04, 2018

A Máquina de Lágrimas de Isabelle Huppert ou As Agruras de um Figurante


Fui convidado por telefone para fazer figuração em um filme de produção estrangeira e percebi mal o recado. Ao pensar que se tratasse de um filme alemão a falar sobre o Nazismo, aceitei sem pestanejar. Seria algo histórico (ainda não tinham feito o “A Queda”) e eu disse que até trabalharia de graça. Ao que disseram que não carecia e que o  cachet seria maior que o normal por se tratar de figuração especial.  A produção precisava de muita gente. Pelo menos cento e cinquenta pessoas dispostas a ficar em pelotas, em pleno Inverno lisboeta.  

Na verdade, não era um filme alemão, era francês, Deux. O diretor Werner Schroeder é que é alemão. Não era sobre o Nazismo. Apenas uma cena onírica interpretada por Isabelle Huppert junto aos mortos de um campo de concentração nazista. De qualquer forma o convite já havia sido aceite e os vinte e cinco euritos davam bem jeito.  E seria só para tirar a roupa, não para falar alemão.

No ginásio desportivo onde seria rodada a cena havia aquecedores por todo lado, ainda assim procurei um sítio bem cômodo para a filmagem que seria demorada, o que, para papel de morto é um grande inconveniente. Deitei-me sobre três mocinhas adolescentes rechonchudas. Tão bem acomodado que daria até para tirar um cochilo para descontar a noite toda passada no Tejo bar. Porém o diretor de cena ao reparar nas minhas costelas resolveu colocar-me mais à frente da cena, onde estavam os mais cadavéricos. Mudou tudo. Das almofadas naturais fui para o chão de cimento. Em vez de cochas e barriguinhas, a ponta de uma pila a fazer-me cócegas no ouvido. E só podia mover-me após o “corta” tantas vezes dito. Por um pouco de sorte, o referido membro era de um conhecido francesinho, cliente do Tejo bar e quem havia dado o meu contato para a assistência da produção. Não me lembro do seu nome, mas o grau de intimidade adquirido nas noitadas de Alfama me permitiam retirar manualmente o enxerido da orelha, sem atrapalhar os “takes”.  

Como a sorte também nunca vem sozinha, pude ver a Isabelle Huppert a partir de uma posição privilegiada. Posição tal que se rapaz ainda fosse me gabaria todo, mas já sou quase maduro para não me abalar muito com os mistérios do que será que se vislumbra no escuro fundo de uma saia. Grande sorte a de poder ver a atriz francesa derramar lágrimas a cada vez que seu nome era gritado pelo realizador como em um reflexo pavloviano nas incontáveis repetições que foram feitas. Era assim: Atenção. Câmara. Isabelle! E ela abria a torneira automaticamente. Nunca vi nada igual!

Poderia estar me sentindo o máximo. Um ator abençoado pelas lágrimas de uma deusa da Sétima Arte a quem respingou algumas gotículas do pranto, ainda que falso, em seu rosto de morto com olhos arregalados que suscitou um agradecimento de parte do diretor de cena.  Mas não. Mesmo velho, ainda fico bobo a pensar no que seria aquilo que meus olhos viram quando a atriz passou por cima de mim derramando as lágrimas que nem foram bem aproveitadas na montagem final. Coisas do cinema.



quarta-feira, maio 02, 2018

Zé Brasileiro Português de Braga


Quando cheguei a Portugal, em 1990, já fazia uns dez anos que a música Zé Brasileiro Português de Braga tinha feito um enorme sucesso e ainda repercutia. O jargão me acompanhou por muito tempo. Ao me apresentar, alguém mandava logo com o “Brasileiro de Braga?”. É daquelas músicas chicletes que se você a ouve pela manhã, passa o dia com ela no ouvido. Um refrão que não há quem não assobie. Para balançar o capacete então nem se fala! Passei vinte anos em Portugal e até fui a Braga, mas não cheguei a perceber isto do ser português de Braga. Imaginava que talvez por ser desta cidade grande parte dos que emigravam para o Brasil. Ou poderia se tratar de alguma figura folclórica regional. Ninguém me respondia direito. A maioria dizia que era só por causa de uma música que a Alexandra cantou num Festival da Canção e que foi tão tocada que chegou a saturar, como é comum acontecer com os “hits”.

Quatro anos depois de estar de volta ao Brasil,  aos amigos da terrinha, recebemos o convite do Rodrigues Vaz para irmos a Constância conhecer o Zé Brasileiro Português de Braga. Achei que o amigo estava com reinação. Não estava. Fomos ao palacete de três andares, todos três muito bem ocupados por gatos, chuchus amarelos, arte para todo lado, relíquias, desenhos de Burle Marx... e um museu com a vida e obra do grande poeta e ator Vasco de Lima Couto, de quem nosso anfitrião nos presenteou com um envelope cheio de poesia, como tudo naquele casarão abençoado.  No envelope, o poema que serviu de letra para a canção que António Sala musicou como prenda de anos para o José Ramoa, o próprio Zé Brasileiro Português de Braga, ali, na nossa frente, todo saudade e simpatia a exaltar o amigo poeta nas tantas coisas boas que nos legou.

Identifiquei-me de cara com o poema por também ter meu tempo adolescente de perdido nas avenidas de Copacabana.

Eliana deu-me a ideia de colocá-lo em uma música que permitisse mais facilmente perceber-se a profundidade daquele mar. Para tal, pensei logo no fado, ao qual o próprio silêncio obriga. Mas havia que ter um sotaque brasílico consoante a história da personagem. A isto também se atinou o grupo Azeituna, que a executa em ritmo de samba, quase que invariavelmente, acompanhada de palmas e exuberante alegria. Bem, como o Fado e o Samba são irmãos, fiz uma melodia sem muita firula para cantora Roberta (Romi Kari Oca), que tão bem se adapta aos dois modos, combiná-los. Porém, o ideal é deixar o poema caminhar por si só, ainda que devagar... o céu é redondo.