sexta-feira, janeiro 26, 2024

Meu primeiro atestado de pobreza

Hoje, com setenta e um anos de idade, fui fazer o Cadastro Único com a finalidade de obter  a Carteira da Pessoa Idosa e poder auferir os benefícios de passagens gratuitas ou com desconto. Este é o meu terceiro atestado de pobreza ainda que tenha o nome de CadÚnico. O segundo também foi para obter passe livre nos ônibus, desde que em dias úteis e vestindo o uniforme da escola. Mas quero falar da primeira vez que enfrentamos a burocracia e até um certo vexame, não de minha parte, pois nunca me preocupou o fato de ser pobre ou suburbano.

Foi em 1963. Correu uma notícia de que o Walt Disney havia destinado uma enorme quantia em dinheiro para ser dividida entre a estudantada da Escola Pública. O que, segundo um jornal, daria cem cruzeiros para cada estudante. Cem cruzeiros!  Cr$ 100,00 (assim se escrevia numericamente). Precisava ver a alegria com que meu pai soube da nova. Para ter uma ideia, os cenzinhos davam para comprar dois enxovais completos (ia poder lavar o uniforme mais regularmente), incluindo sapatos de verdade (ia também me livrar do “Tô na merda”, feito em borracha inteiriça, imitando os de couro e que deixava um chulé terrível)... e ainda sobrava um pouco para ajudar a família em outras coisitas. Nunca se soube direito o porquê dessa doação. Alguns jornalistas atribuíam ao fato do artista-empresário ser muito grato ao Brasil, de onde ele absorveu vários aspectos culturais que contribuíram para a sua obra. Outros diziam que a ação fazia parte da Aliança Para o Progresso, no tal acordo MEC-USAID, que distribuía um leite em pó que grudava no céu da boca e o bedel descobria logo que a gente tinha agido como camundongos na despensa da escola. Também se aventava que o milionário havia feito um sorteio entre os (uns dizem todos, outros dizem que só os “subdesenvolvidos”) países do mundo. Para nós, não importava o motivo. Por pelo menos um ano estaríamos letivamente ricos.

Mas, aí, veio um complemento da notícia. A partilha da fortuna seria apenas entre os estudantes pobres da Rede Pública de Ensino. Foi aquela correria dos pais, os mais beneficiados com a doação. Nem gosto de lembrar as chatices. Comprovar riqueza é bem mais simples. Papelada na mão, demos entrada. Agora, é só aguardar. Esperar. Esperança!

No ano a seguir, houve um Golpe de Estado que instituiu uma Ditadura Militar. Os mais velhos diziam que os que estavam no poder agora era gente séria e que iriam moralizar a máquina pública e saldar todas as pendências para com a sociedade. Principalmente na questão de dinheiro, já que um dos objetivos principais da tomada de poder era acabar com a corrupção, coisa que o civil Jânio Quadros não conseguiu varrer como prometido. Nos meus doze anos, não entendia nada disso, mas ficava alegre sabendo da alegria que teria meu velho quando a tal máquina pública fosse saneada, como diziam... e já me via de uniforme azul e branco, branquinho de doer nos olhos.

Esperamos. 65, grande festa para os quatrocentos anos da sofrida Rio de Janeiro. Será que os nossos cenzinhos fizeram parte da malograda chuva de prata que programaram para o aniversário da cidade? Via-se que dinheiro não faltava. Tudo que se fazia era em grande. O MEC-USAID foi escancaradamente assumido e mudou até o número de anos que se deveria ficar na escola. Mas eu só queria os cem, que segundo meu pai, já não valeria tanto. Que desse pelo menos pros sapatos! Um coleguinha disse que nunca soube de que uma pessoa deixasse uma herança estando viva. Então vamos torcer pra que o Disney morra? E os desenhos animados? No outro ano, o Walt Disney morreu. Agora vai! É só esperar mais um pouco.

Essas coisas demoram. É dinheiro que vem do exterior. Muita burocracia. Nas notícias sobre a morte do desenhista não se falava nada a respeito. Ih, isso é coisa para uns dois anos. Imagina! Crianças do Brasil inteiro... Dois anos. 68. Agora vai! E viu-se onde fomos parar.

Será que agora se esse dinheiro saísse e com todos os juros e correções monetárias... talvez, eu não precisasse tirar meu cartão de idoso.