Hoje, com setenta e um anos de idade, fui fazer o Cadastro Único com a finalidade de obter a Carteira da Pessoa Idosa e poder auferir os benefícios de passagens gratuitas ou com desconto. Este é o meu terceiro atestado de pobreza ainda que tenha o nome de CadÚnico. O segundo também foi para obter passe livre nos ônibus, desde que em dias úteis e vestindo o uniforme da escola. Mas quero falar da primeira vez que enfrentamos a burocracia e até um certo vexame, não de minha parte, pois nunca me preocupou o fato de ser pobre ou suburbano.
Foi em 1963. Correu uma
notícia de que o Walt Disney havia destinado uma enorme quantia em dinheiro
para ser dividida entre a estudantada da Escola Pública. O que, segundo um
jornal, daria cem cruzeiros para cada estudante. Cem cruzeiros! Cr$ 100,00 (assim se escrevia numericamente).
Precisava ver a alegria com que meu pai soube da nova. Para ter uma ideia, os
cenzinhos davam para comprar dois enxovais completos (ia poder lavar o uniforme
mais regularmente), incluindo sapatos de verdade (ia também me livrar do “Tô na
merda”, feito em borracha inteiriça, imitando os de couro e que deixava um chulé
terrível)... e ainda sobrava um pouco para ajudar a família em outras coisitas.
Nunca se soube direito o porquê dessa doação. Alguns jornalistas atribuíam ao
fato do artista-empresário ser muito grato ao Brasil, de onde ele absorveu
vários aspectos culturais que contribuíram para a sua obra. Outros diziam que a
ação fazia parte da Aliança Para o Progresso, no tal acordo MEC-USAID, que distribuía
um leite em pó que grudava no céu da boca e o bedel descobria logo que a gente
tinha agido como camundongos na despensa da escola. Também se aventava que o
milionário havia feito um sorteio entre os (uns dizem todos, outros dizem que
só os “subdesenvolvidos”) países do mundo. Para nós, não importava o motivo.
Por pelo menos um ano estaríamos letivamente ricos.
Mas, aí, veio um complemento
da notícia. A partilha da fortuna seria apenas entre os estudantes pobres da
Rede Pública de Ensino. Foi aquela correria dos pais, os mais beneficiados com
a doação. Nem gosto de lembrar as chatices. Comprovar riqueza é bem mais
simples. Papelada na mão, demos entrada. Agora, é só aguardar. Esperar.
Esperança!
No ano a seguir, houve um Golpe
de Estado que instituiu uma Ditadura Militar. Os mais velhos diziam que os que
estavam no poder agora era gente séria e que iriam moralizar a máquina pública
e saldar todas as pendências para com a sociedade. Principalmente na questão de
dinheiro, já que um dos objetivos principais da tomada de poder era acabar com
a corrupção, coisa que o civil Jânio Quadros não conseguiu varrer como
prometido. Nos meus doze anos, não entendia nada disso, mas ficava alegre
sabendo da alegria que teria meu velho quando a tal máquina pública fosse
saneada, como diziam... e já me via de uniforme azul e branco, branquinho de
doer nos olhos.
Esperamos. 65, grande festa
para os quatrocentos anos da sofrida Rio de Janeiro. Será que os nossos cenzinhos
fizeram parte da malograda chuva de prata que programaram para o aniversário da
cidade? Via-se que dinheiro não faltava. Tudo que se fazia era em grande. O
MEC-USAID foi escancaradamente assumido e mudou até o número de anos que se
deveria ficar na escola. Mas eu só queria os cem, que segundo meu pai, já não
valeria tanto. Que desse pelo menos pros sapatos! Um coleguinha disse que nunca
soube de que uma pessoa deixasse uma herança estando viva. Então vamos torcer
pra que o Disney morra? E os desenhos animados? No outro ano, o Walt Disney
morreu. Agora vai! É só esperar mais um pouco.
Essas coisas demoram. É
dinheiro que vem do exterior. Muita burocracia. Nas notícias sobre a morte do
desenhista não se falava nada a respeito. Ih, isso é coisa para uns dois anos.
Imagina! Crianças do Brasil inteiro... Dois anos. 68. Agora vai! E viu-se onde
fomos parar.
Será que agora se esse
dinheiro saísse e com todos os juros e correções monetárias... talvez, eu não
precisasse tirar meu cartão de idoso.
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