domingo, novembro 29, 2020

A viagem maior

Cara Filomena Cabral, deite fora, ou antes, pendure no cabide o xaile da preocupação que lhe assentou sobre os ombros ao saber da tresloucada ideia que Eliana e eu tivemos de atravessar o Brasil de Leste a Oeste, em plena pandemia, montados em um carocha. O fado mudou ao primeiro empecilho para a aquisição da montaria que até nome já tinha. O fusquinha seria chamado de Demoseille, por ser emplacado em Santos Dumont, cidade mineira  onde viveu sempre acarinhado pela Marta, que de última hora não pode fechar o negócio. Foi coisa providencial. Assim, como se diz por cá, caiu a ficha! Vamos ficar recolhidos nas montanhas e deixar as estradas para as pessoas, verdadeiras heroínas, que não podem manter o isolamento, senão o mundo para.

Quanto a essa febre de viajar que nos acometeu, dissipou-se rapidamente, pois o imbróglio que se deu na negociação já suscitou dois contos e um poema.

E não há viagem maior que a literatura.

Ouvi dizer que o severo pai de Júlio Verne não o deixava ir para sítio algum. O rapaz trancava-se no sótão e de lá nos levou para o centro da terra, para o fundo do mar; com ele, demos a volta ao mundo e fomos até para a Lua. Ao se emancipar, ele viajou, desta feita, sozinho.

Eliana e eu estamos mais leves, conformadas e compensadas, sossegamos o bicho carpinteiro. E, ora pois, uma cidade com um nome desse deve ser boa para se negociar é avião.

P. S.: Não só para a Filomena, mas para tranquilidade dos parentes e amigos que achavam que estávamos cobertos de desgostos para fazer uma coisa dessas.

Beijinhos.



terça-feira, outubro 06, 2020

Deixa eu te Contar!

DEIXA EU TE CONTAR! Assim foi como foi de quando eu quis fazer a dedicatória de um livro de minha autoria ao Zé Pedro. E não consegui. “Mas porém contudo todavia” e entretanto, por se tratar de uma curiosidade literária, não contarei só para o amigo Zé Pedro e sim para quem quiser ouvir. É daqueles casos em que o criador não tem controle sobre a criação. Como é sabido, tudo pode acontecer num romance durante a sua feitura. A ideia surgiu depois da festa de lançamento do ‘Was Bach Brazilian? O Puto do Adufe ou o Inventor do Baião’, romance idealizado por Mucio Sa e posto no papel por mim, com a ajuda de praticamente todos os frequentadores do Tejo bar. Consta que fora a maior festa já vista em Lisboa com tal finalidade. A Fnac, organizadora do evento, deu preferência ao Bar do Teatro A Barraca, pois, se para o anúncio do Prémio Fnac/Teorema 2004, o auditório da loja ficou pequeno, imagina-se para o lançamento do livro. Que coisa mais linda! O Cristiano Holtz, ao cravo alugado pela Livraria, executava um Bach atrás de outro e como enquanto se ouvia Bach, não se podia entrar, ele foi obrigado a parar antes de terminar o repertório escolhido, já que o átrio e as escadas do teatro estavam abarrotados e até houve gente que desmaiou. Depois do cravo deu-se na ferradura. Quem quisesse dar uma canja era só colocar um chapéu de cangaceiro e executar um baião, de preferência, ou outro ritmo. Robson, um carpinteiro muito famoso em Lisboa, que é capixaba, mas só andava de alpercatas e chapéu de vaqueiro nordestino emprestou o chapéu. Mucio, o parceiro no livro e que também é músico dedilhou ao violão o Trenzinho Caipira, do Villa-Lobos, eu comecei a cantarolar e a cantora e pintora Mira, deu reforço espalhando a voz maviosa e maravilhosamente afinada dela por sobre e adentro a imensa e silenciosa plateia. O artista plástico António Ferraz puxou-me pela manga e disse lacrimejante: “Este é o dia mais feliz da minha vida.” Sua mulher Cidália Ferraz, sorria embevecida e não precisou dizer nada, abraçodada com o seu velhinho. Mira, vestida de baiana, vendia acarajé. Pensou-se que se tratava de encenação, mas não. Vendia mesmo. Além de cantora e pintora a Mira Fragoso tem outros dons. Vendia os famosos bolinhos da Bahia e ainda tinha como cunhã a cantora Glória Lopo, esta, baiana de verdade. Sérgio, o arrimo das noites pachorrentas do Tejo bar, começou a vender os livros e não deu para quem quis. Carlos Veiga até pensou em desfalcar o Tejo bar levando a prata da casa para vender os livros da Teorema. Claro que era brincadeira. E nem tinha cabimento. Onde já se viu! (Três anos mais tarde a Teorema seria açambarcada pela gigante Leya) E o Sérgio teria ficado esse tempo todo longe dos copos!? E do Tejo, que lhe salvara a vida, como ele próprio dizia! Às tantas, o Changuito, quem cuidava do espaço, pediu arreglo, fechou a casa e a festa se espalhou pelos becos e vielas de Alfama para terminar no Tejo bar, que se não salvou a minha vida também, deu-me imenso gozo e até hoje o trago comigo. Pela manhã, ainda no rescaldo da fuzarca, tomava o pequeno almoço com a escritora Marie Alix de Saint-Roman, que viajara de Sevilha a propósito, também ela personagem homenageada no romance. Foi aí que caiu a ficha. Uma festa linda daquela e não estava lá o meu amigo Zé Pedro, que estaria também aqui agora com a gente a tomar esse galão com torradas. Depois que Orfeu tangeu a lira, fui dormir chateado comigo: Puxa, nem mesmo uma personagem para lembrar quem era meu amigo desde criança ele e que nos deu um leito quando por cá, Mira e eu, chegamos na qualidade de imigrantes ilegais. Quem começou comigo e a Mira essa aventura chamada Tejo bar, organizando uma festa ainda maior que esta de ontem. Mas vocês não estão brigados? E daí! Tem mais gente com quem estou brigado e mesmo assim entrou no livro. Até o meu senhorio, que nos cobra o leito, entrou. Deixa estar! O próximo romance dedicarei a ele. Ao Zé, nosso salvador. Um outro salvador, o Paulo Tavares, diretor da Pousada de Juventude de Picoas, que nos deu boa guarida, ganhou um samba em agradecimento. O Zé vai ganhar um romance.

O livro foi, dos meus, o mais vendido por causa do prémio e a flashada da Fnac; e foi o menos lido por causa das complicações literárias. Reclamavam. E eu dizia Quer leitura fácil vai ler Paulo Coelho. Perguntava Leu? Só a parte que eu entro, diziam. Não tive pachorra! Muito cacete. Bem verdade que vivíamos numa época em que tudo era muito apressado, muito lotado, muito corrido. Não era como hoje que as pessoas tem todo o tempo e o espaço do mundo até mesmo para se entreter com a leitura de Guimarães Rosa. Eu entendo os meus leitores, ou meio leitores, afinal eu também ando apanhando com o Ulisses, do James Joyce. Três vezes comecei e três vezes não passei da página cem, até que um joiciano me disse que aquilo pode ser lido aleatoriamente. Pois para os meus quase inteiros leitores prometo uma próxima mais acessível. Taí, farei um romance pimba (no Brasil, brega), se não por cafonice, por simplicidade. E este será dedicado ao Zé. Alguém diria É uma maneira de se fazer as pazes. Sei lá! Pode ser! Faltava a ideia. O tema.

Luiz Morgadinho, artista-plástico, colega da Rua Augusta e das feiras de artesanato, onde vendíamos nossos desenhos (e já amigo) contou-me uma história do tempo em que ele era crooner da banda punk Bastardos do Cardeal. Conheceu um cantor que participava do movimento punk de Coimbra que tinha uma voz descomunal. Um punkeiro de primeira, mas, quando estava na vida social fora da margem, não conhecia ninguém. E também era difícil reconhecê-lo em outros trajes e penteado. O jovem era filho do embaixador mexicano e não queria problemas com o pai. Na bucha, eu disse Vamos escrever isto. O Morgadinho topou. Faríamos as devidas mudanças para não se identificar a personagem. Passou a ser o Gastão, filho de um embaixador da Venezuela, país escolhido, não só pela relação migratória com Portugal, mas também por causa da Arminda, uma amiga comum, que poderia nos dar as dicas da sua terra de nascimento. Ficou assente que seria o mais pimba possível. Morgadinho dedicaria de sua parte a quem bem entendesse e eu, já acertado, dedicaria ao Zé. O Zé Pedro.

Muita discussão, muita conversa... Lá por tantas feitas surgiu um Zé, protagonista, atirando o Gastão para personagem central. Um Zezinho que nada tinha a ver com o nosso Zé. Um Zezinho que poderia ser Juquinha, Ruizinho... mas calhou Zezínho.

Mais. Tanta conversa, tanta pimbalhada, que até os autores escritores se esvaneceram. Apareceu uma personagem para se assumir como alguém que pudesse juntar toda aquela parafernália e escrever uma história, de seu nome, Esteves, do Morgadinho e Oliveira, de minha parte. Por via do enredo vimo-nos forçados a fazer a dedicatória à tal personagem no livro ‘Punk, Rock & Cia. ou O Grande Gastão - Um Romance Pimba por Esteves Oliveira’. Ao Zezinho.

O amigo Zé fica para a próxima, ainda que já tenhamos feito as pazes.






quinta-feira, setembro 10, 2020

Eus e Saramago

  


Quem conhece pelo menos um pouco o escritor José Saramago, fica surpreso com a forma carinhosa com que ele me tratava. E eu fazia questão de mostrar à malta do Tejo bar os faxes e emails e falar dos  telefonemas que dele recebia, alguns mesmo de antes de eu trabalhar no cultíssimo bar de Alfama. As pessoas não entendiam tanta simpatia por parte de quem era tido como avesso aos sorrisos e tapinhas nas costas. Eu tive a sorte de cair nas graças do escritor que só me conhecia através das cartas que lhe enviava, mas ainda assim respondia atenciosamente, o que muito me incentivava a continuar na escrita e ir mais além dos pequenos textos que enviei para a sua apreciação. Tal foi o incentivo que cheguei a dedicar a ele o meu último romance editado em Portugal.

Entretanto, havia um outro eu que ele conhecia bem e por quem tinha verdadeira ojeriza e de quem, se não fosse por ser quem é, eu diria que fugia como o Diabo foge da cruz.

Vou contar como esse relacionamento bipolar se deu.

Junto com os artistas-plásticos Yves Robles e Luiz Morgadinho, participava da Feira de Frutos Secos e Passados de Torres Novas quando soube que o Nobel de Literatura tinha sido atribuído a Saramago. Que festa fizemos! Que choradeira! Risos e hurras pelo golo da vitória no último minuto do prolongamento que tanto se estendia desde que o Prémio fora instituído, vingando Vergílio Ferreira, Jorge Amado... e tantos outros de outros países, que a embriaguez álacre do momento não deixava lembrar, mas que bastava esses dois para mostrar o tamanho da injustiça para com a língua portuguesa.

Eu que raramente lido com as cores, deixei o café de lado e procurei retratar o nosso herói com as cores da bandeira. Imaginei-o vestido de campino, montando um alazão, com uma caneta dourada no bolso do jaleco e um sorrisinho de canto de boca. E não é que o escritor nasceu em uma terra que é conhecida por ser a região dos campinos! Fiquei a saber depois de pronto o desenho. Chamei ao quadro de “O Homem da Azinhaga”.

Aconteceu de eu estar querendo publicar o livro “Dona Peta – Conto Minha Vida” e o encarregado da edição pediu-me a pintura como parte do pagamento, mas tirei uma fotografia para mostrar ao retratado

.

Junto enviei as minhas receitas de café, um opúsculo com curiosidades e maneiras de preparo da bebida, com o qual presenteava a quem comprava meus desenhos, e uma crónica de agradecimento pelo direito que me deu de falar a palavra nobel do jeito que quisesse e não “nóbel” como diz a pronuncia americanizada. Afinal, agora também temos um!

Para grande surpresa, recebi um fax, que a Miudinha, a gata da casa, ia estraçalhando enquanto a folha era posta para fora por aquele barulho atrativo também para nós humanos que logo corríamos para ler a mensagem enquanto o mecanismo ia escrevendo. Tratava-se de uma mensagem da senhora Pilar del Rio que, em nome do escritor, agradecia a simpática missiva e dizia que o escritor muito gostou de se ver vestido de campino, que tinha se divertido com meus escritos e que experimentaria minhas receitas com o bom café português que nunca faltava em sua casa em Lanzarote. Imaginem como eu e a Miudinha ficamos! Eu, todo bobo e ela, assustada com dois petelecos no focinho. A partir daí, passei a enviar os meus manuscritos, inclusive, dos romances mais extensos. Um deles, o que escrevi junto com o Morgadinho, Saramago fez questão de comentar. Tratava-se do “Punk, Rock & Cia. ou O Grande Gastão – Um Romance Pimba por Estêves de Oliveira”, um livro que não tinha autores, só personagens, assim como seriam as personagens que deveriam pagar pela confecção dos mil exemplares numerados e assinados. Pois, o escritor pediu que seu colaborador o senhor Acuña (?) enviasse o comentário e que dissesse que ficou muito contente em se ver vizinho de um busto de Agostinho da Silva (como está retratado no romance), acontece que o comentário foi feito na língua espanhola e nós o colocamos assim mesmo no prefácio. Parece que ele não gostou de ver um comentário seu em outra língua em um livro português. Não tenho certeza disso, apenas conjecturei, depois da maneira fria com que o senhor Acuña respondeu ao meu pedido de dinheiro para ajudar na publicação. “Isto, só com o Escritor. Pessoalmente.” Disse secamente, em sua língua mãe, mas percebi tão bem, que não tive coragem de procurar o Escritor, que foi das poucas personagens que não participou da coleta. Puxa, que ingratidão! A gente tinha um prefácio com palavras de Saramago e se aborrece por ele não participar da vaquinha!



Mas isso não abalou a minha admiração por ele, e acredito que a dele por mim (um dos eus), também não modificou, tanto que quando lhe disse que ia me imiscuir em seu Memorial do Convento no meu novo romance, ele disse que eu me sentisse à vontade. Assim o fiz. Fiquei à vontade e ainda ofereci a ele. Só ele e eu sabíamos de quem se tratava o José da Azinhaga na dedicatória “A Dona Peta que me alumiou. A José da Azinhaga que me incentivou.”de As Agruras de Beiraldo Alma, editado pela Teorema, em 2007. Depois da morte do escritor, Eliana e eu levamos um exemplar para a Fundação José Saramago, em Lisboa, no qual eu destaquei a alcunha e escrevi o nome verdadeiro.

  

Agora, voltemos ao entretanto.

Depois de passada a febre da alegria, pensei que alegria maior seria ele recusar o prémio. Dar uma de Sartre! Mas olha pra isto! Eu, que fui para o Funchal atrás dos cinco mil euros do Prémio Edmundo Bettencourt e ao Fundão atrás dos euritos do António Paulouro, torcendo para que um colega não vá a Estocolmo receber um milhão de dólares, pode!? Áa, mas eu não sou Saramago! Ele foi para a Suécia. Pensei, mas não vai vestir casaca. Vestiu. Não se vai curvar ante o Rei. Curvou-se. Ele está guardando para o final apoteótico. Portugal não merece o prémio. Não o impediu de participar no Prémio Literário Europeu com o seu Evangelho? Na última hora vai lembrar de que por isso largou a Terra que tanto amava para ir morar em ilhas distantes e vai dar uma banana para Portugal que continuará só com o controverso nobel do Egas Moniz!  Vai dar um manguito, como bem o faria o Luiz Pacheco! Não deu!

Na minha mesquinhez, fiquei relembrando umas falas do Jorge Amado bem antes de suas conversas com Saramago em que ambos viam com simpatia o tal prémio e até torciam um pelo outro. Pois, o escritor bahiano achava que nunca concorreria ao Nobel, visto que para tão grande honra nunca escolheriam um escritor que dissertava sobre putas e malandros. Ele mesmo dizia que não se sentia à altura e que só aceitaria se pudesse dividí-lo com Vergílio Ferreira, escritor português que ele muito admirava. Pronto. Está explicado. Foi contagiado pelo colega brasileiro. Se calhar até foram pedir uma ajudinha em algum Terreiro de Candomblé, em Salvador.

Será que foi o tanto de zeros à direita do valor pecuniar que fez com que ele aceitasse? Herberto Hélder recusou o Prémio Pessoa e era uma pipa de massa! Certo, com menos zeros, mas que, para a vida singela com que vivia, bem equivalia a um nobel.

Essa minha alma frustrada só viria a ser lavada muito tempo depois, em 2016, através da personagem Daniel Mantovani, do filme “El ciudadano ilustre”, de Gastón Duprat e Mariano Cohn. Mas enquanto isso...


Afinal,  apareceu a primeira oportunidade para manifestar a minha alegria e indignação ao mesmo tempo – como pude ser tão parvo?! foi durante a abertura da feira do Livro de Lisboa, a primeira após o prémio. Eu lá estava em protesto contra a Câmara, que por questões burocráticas me fez perder o atelier que tinha na Mouraria. Sabia que o Presidente da Câmara, o João Soares, lá estaria. Meti-me numa asa de grilo, com um laço vermelho ao pescoço e uma placa de cartão pendurada ao peito com a frase, “Fiquei só com o email e a roupa do corpo”

Ao me aproximar da comitiva camaral deparei-me com Saramago, um pouco aturdido meio aos rapa-pés. Agarrei-lhe a mão, beijei-a e disse “Uum, deixa eu esfregar essa mãozinha de um milhão de dólares”.O pobre homem nem teve reação, tal a surpresa. Escapei-me por entre os bajuladores e fui com o meu fraque e minha placa procurar sensibilizar o João Soares, que me ouviu cortezmente. Não consegui o atelier de volta, mas fiz a “gozação” que tanto queria. Viu que parvoíce! E ainda fiz mais. O Jorge Sampaio quando se tornou Presidente da República, ofereceu um jantar no qual toda a classe artística foi convidada. Eu, enquanto participante da Associação Cultural Teatro de Marionetas A Lanterna Mágica de Lisboa, lá estava e, claro, também estava o artista da escrita, Saramago. Novamente nos encontramos. Eu, dessa vez, de “smooking”, a condizer com a recepção, fui logo reconhecido por ele que tentou esgueirar-se, mas consegui  agarrá-lo pela mão dizendo umas tantas tontas palavras. Mais parvo, impossível! Com o Herman José conversamos sobre a Dona Peta, com o Manoel de Oliveira falamos sobre o João César Monteiro e perdi a oportunidade de trocar ideias sobre tantos bons assuntos, inclusive Dona Peta, que estava em voga na altura, e pior, ainda fui desrespeitoso justamente com alguém que tanta atenção dispensou  às minhas pequenas coisas e a elas respondia com carinho. Parvo e ingrato! Mas haveria um terceiro encontro e ai eu me redimiria. Houve. foi numa outra Feira do Livro de Lisboa. Ele estava na banca de autógrafos. Entrei na fila. Eu, de roupas comuns e despenteado, como geralmente me encontro em quase todas as situações, fui traído pela voz; enquanto ele entregava um exemplar assinado, eu disse, vim aqui só para apertar a sua mão e dizer que... não consegui terminar a frase. Ele, sem nem ao menos olhar para mim, empurrou bruscamente a minha mão e olhou para outro lado. Deixei assim mesmo. Bem feita! Saí vexado, com o rabinho entre as pernas.

Saiamos do entretanto. Continuamos a nos falar, não mais com fax, mas com telefone e correio eletrónico através das pessoas que o assessoravam ou diretamente pelo correio com que enviava para ele tudo que escrevia e... é o que já se sabe.  Certa vez ele manifestou o desejo de conhecer o Tejo bar e que iria fazê-lo quando voltasse a Lisboa. Fiquei estarrecido. Ele descobriria que eu era o mesmo gajo impertinente que tantas vezes o molestou. Como reagiria? Torci para que ele nunca fosse a Alfama ou que fosse quando lá eu não estivesse. Já achava piada a isso tudo. Não gostaria que se quebrasse o encanto. O que, por um triz, não aconteceu. Na Feira do Livro de Lisboa de 2005, o sítio onde estava com a minha banquinha autografando o “Was Bach Brazilian?” que ganhara o Prémio Fnac/Teorema e tinha sido publicado no ano anterior ficava a poucos metros de distância da banca de autógrafos do meu meio amigo. Uma brincadeira da turma envolvida no romance do Grande Gastão era pegar assinatura das personagens do romance e a minha filha Maiara foi pegar a do morador da República Independente de Vila Morena, na Rua Colibri, número único, pois é uma rua pequena que do outro lado tem um jardim em homenagem ao Agostinho da Silva, o precursor dessa república dos simples. Maiara foi tal pai. Só faltou saltar ao colo do homem. Foi com todos os meus livros na mão pedindo para assiná-los e dizendo que deveria lê-los e que eram bons não porque eram do meu pai mas... E o fotógrafo Salvo Parrinello a registar tudo. 


“Calma, minha filha!” Disse o escritor, tomando os livros e assinando-os um por um. “Eu já os li!”. À pala disso, vendi uns tantos exemplares para os fãs do escritor que viram a cena. E foi aí que, numa das pausas para descansar os dedos, ele se dirigiu para onde a Maiara abalou na carreira. Ao perceber que ele se aproximava, escondi-me atrás da carrocinha dos gelados e fiquei espreitando aquele homem alto de passos calmos e elegantes olhando ao redor da minha banquinha. Ele esperou um pouco e eu esperei ele deixar de esperar. Até hoje imagino o que seria se eu desse azo à minha vontade que era agarrar novamente a sua santa mão. Beijá-la. E, tal filha, dançar aos pulinhos em volta dele.

 

Rio Branco, 9 de setembro de 2020.

 

Dedicado a Sandro Silva e a Jaime Alves que boas histórias têm com o Escritor.


Para baixar, clique aqui.











sábado, agosto 29, 2020

Por que boceta



Assim que cheguei a Portugal vi anunciado na programação da televisão local, o filme A Boceta de Pandora. O título não me importou, pois assim o conhecia desde que meu avô contou-me a história, não do filme, mas da mitologia grega que diz que Pandora libertou todos os males do mundo. Aos portugueses, o título não incomodava porque não haviam sido contagiados pelo termo utilizado com duplo sentido na canção A boceta de rapé, com a qual o cantor Mário Pinheiro fez grande sucesso, em 1902. Daí para cá o termo ficou associado ao órgão sexual não só da vovó referida na canção, mas de todas as mulheres e esquecido ficou enquanto o recipiente para se colocar rapé. Talvez, só meu avô e agora eu, que ainda uso o termo, pois não achei nenhum equivalente, para dar a devida graça à história mitológica, justo pelo tamanho diminuto. Vejamos por que: Se trocamos o termo por caixa, não sendo as d’água, de força ou de pecúlio, que precisam do complemento, várias imagens nos vem à cabeça; pode ser a caixa que embalava a geladeira nova, que é uma grande caixa, mas o termo caixão, na nossa língua, nos dá outra ideia e, uma geladeira num caixão estaria para ser enterrada, nova ou velha; pode ser uma caixa de sapatos; até mesmo a caixa que transportaram os exemplares do livro A Audiência dos Mortos, de João Veras, uma verdadeira pandorada, no movimento artístico cultural do Estado do Acre. Como chegarmos à ideia do tamanho de uma caixa ao dizermos caixa? A menor que visualizamos é a de fósforos, que vira caixinha quando a servir de instrumento musical de acompanhamento do samba e que é menor que a caixinha de música muito usada para porta-joias, mas ainda assim, é muito grande para portar todos os grandes males da humanidade, que só tem piada se for muito pequena, assim como os melhores perfumes estão nos menores frascos (e os venenos também). Caixa de pó de arroz. caixa de charutos, caixa de costura, caixa dos óculos... a mais pequena era mesmo a boceta de rapé, verdadeiras joias, frequentemente, de metal, ornadas de madrepérolas com ouro e prata, que os cavalheiros e as damas de bom trato portavam em quaisquer ocasiões. Ou, simples, toscas, de madeira ou cabedal, quando as damas ou os cavalheiros não eram tão bem tratados das finanças. Já houve tentativas de se trocar o termo por bolsa o que, no caso do filme de George Wilheim Pabst, em que a personagem se prostitui, até que... Bem, deixemos de lado as insinuações com a vovó do Mário. Mas no caso mitológico, não há termo mais apropriado. Caixinhazinha? Pequeníssima caixinha? Melhor deixar boceta mesmo, que é o aportuguesamento de uma palavra francesa, que por sua vez, vem do latim, buxis. Melhor deixar assim, mesmo sabendo que dela derivou a famosa buceta, nossa maior contribuição para o vocabulário fescenino, das mais simpáticas e a atuantes da nossa língua no Brasil, junto com a bunda do quimbundo e o caralho (o mastro da bujarrona, grande estaca, esteio) do português, que vem desde o grego passando pelo  latim. Agora, vejam que ironia. Com a volta do hábito social de se inalar o rapé, não sei bem por que e como, os recipientes onde se comercializa e se armazena o produto são, em sua maioria, em forma cilíndrica. Uns tubos. Fálicos! E eu não fico pejado em dizer: A buceta virou um caralho! 

No link a seguir, a gravação de A boceta de rapé

https://www.youtube.com/watch?v=fLDFS8LqJno

Aqui, o Grupo Clandestinas cantam uma canção A boceta de Pandora  criticando o machismo das mitologias

https://www.youtube.com/watch?v=dje_mXwNTEA&fbclid=IwAR1q2XHxiSG93yXE5-7FQS36TmyUxoeH_KnFB2dghid1akgeaM9S4OguXLE




quarta-feira, agosto 19, 2020

Pai

Shalom, João Pinho, Maiara, Ariane, Silene, Normélia, Mira, Vanderlea, Ianah, Mariah, Stefany, Amanda, Ivan,Kal, João Fião, Dinho, Marinho, Zé Pedro, Luiz Carlos, Francisco, Glória, Alice, Lizzie, Robson, Sérgio, Valery, João Arthur e Rafael; filhos que tive pelo caminho (alguns mortos e outros que não soube de seus nomes), suas mães e os filhos dos filhos. Sempre quis achar um jeito de dizer alguma coisa sobre isso de ser pai, de modo que não parecesse demagogia, hipocrisia, escusas ou arrependimentos. Nunca consegui. Encontrei em uma postagem sobre o Dia dos Pais, feita por Leonízia de Castela.  Palavras de uma mãe.

“PAI:
Tem o que faz, cria e ama;
Tem o que faz, não cria, mas ama;
Tem o que faz, não cria, não ama...
...mas é amado pelos seus filhos.
O pai presente é o que ensina ao filho o amor, o respeito e a importância de uma família;
O pai ausente muitas vezes não ensina o amor, mas aprende com o filho, que insiste que ele é seu pai.
Tem o pai que é mãe;
Tem o pai que é amigo;
Tem o pai, que não soube ser pai, mas acabou sendo filho do seu filho e descobriu um amor que ele (pai) não soube dar.
Tem o pai que não quis ser pai, mas que o tempo mostrou que ele não podia fugir desse compromisso e acabou, mesmo anos depois, aceitando o seu destino;
Pai é pai!
Aqui, excluo apenas aqueles homens que tiveram filhos, não assumiram, não aprenderam com o tempo o que é o amor e não aceitaram que o filho lhe mostrasse.
Portanto, meus parabéns e respeito aos pais que de alguma forma aprenderam, um dia, o significado da palavra PAI”.

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sábado, maio 23, 2020

Fraté te tere tê


1990. La Fraternité, bar de uma associação, ou centro social, protestante, de Lausanne, no Cantão de Vaud, na Suíça. Um cantinho simpático, apelidado La Fraté, gerido e frequentado por uma juventude muito experta e disciplinada, fechava rigorosamente às 23 horas. Por isso, tudo que por lá se fazia, havia que ser intensamente. As noites de quarta-feira eram dedicadas à comunidade brasileira (ou latina, nunca soube ao certo). De qualquer forma, os peruanos e os brasileiros, naquele ano, eram os que mais se destacavam. Em certa quarta, lá estava um violão muito animado, ainda que mal tocado, facto que não afetava a animação ao soar tantas músicas de Jorge Benjor, e o violeiro só tocava Jorge Bemjor... Era um tal de Te te tere tê que a todo instante se instalava entre uma Taj Mahal e um Fio Maravilha... duas três canções e... Te te tere tê, trauteado por todos, mesmo por gente de outras línguas. Em determinado momento, alguém perguntou se não se podia emprestar o violão para o Abrahim, um rapaz do Botswana, que tinha o estatuto de refugiado e que andava muito triste, precisando urgentemente de uma distração. Ele ganhava setecentos francos suíços, tinha onde morar, o que comer, onde estudar. Mas ele queria trabalhar. Andava triste por se sentir um parasita que nada produzia. Uma vida muito diferente da maioria dos imigrantes que lá estavam felizes da vida a cantar Te te tere tê para olvidar a saudade e as privações de quem só vivia para o trabalho, na esperança de amealhar para voltar à terra. Ao Abrahim foi passado o instrumento que, prontamente começou a soar de maneira impecável. Em alto e bom tom fazia-se ouvir por todas as mesas que aproveitavam para descansar a garganta de tanto Te te tere tê. O violeiro inicial aproveitou o descanso para bebericar, não sem certo amuo. Ele estava no maior embalo embalando a casa cheia. O pretinho que não era o Zé da banda tinha uma voz maviosa e muito afinada com a saudade, em língua inglesa, do seu canto africano, mas era pouco intensa e só ouvida pelos que estavam sentados à sua mesa. Todo o salão ouvia, em silêncio o som harmonioso e suave do violão tocando blues. Aconteceu que a sequência de acordes que se ouvia era uma das preferidas do compositor brasileiro... não deu outra! Enquanto o excelente músico cantava baixinho suas saudades, todos nós...  desfiávamos novamente o rosário:  Fio, Taj... e Te te tere tê...

Jorge Carlos Amaral de Oliveira
Rio Branco, AC, um cantinho da Amazónia, trinta anos depois.

OS DESARREPENDIDOS



Grande parte do eleitorado do atual presidente se mostrou arrependida e cada vez mais convencida que não se deve confiar em promessas de campanha. Entretanto, depois do vídeo da tal reunião ministerial, esses eleitores arrependidos tornaram a reiterar o apoio ao líder, alegando que ele não cumpriu as promessas por causa da burocracia e dos outros dois poderes que não deixam e ainda da imprensa, mas acreditam que se lhe derem mais quatro anos, aí sim, ele vai matar os trinta mil, vai acabar com os quilombolas, com as terras dos índios, mandar a oposição para a Ponta da Praia... enfim tudo que disse que ia fazer.

domingo, abril 12, 2020

Camané no Tejo bar

Quando o fadista Camané entrou no Tejo bar, que ainda não conhecia, era madrugada. Todas as casas de fado de já estavam fechadas e... música, só naqueles poucos metros quadrados bem escondidos em um falso beco de Alfama. A canção que se ouvia no momento era Lili Marlene, cantada em uníssono por pelo menos quinze línguas diferentes. De pé, no centro da sala, o artista olhava para todos os lados sem perceber bem o que estava acontecendo. Assim continuou por um bom tempo enquanto outras melodias eram cantadas, mas que, ainda que em português, com acentos estrangeiros e regionais. Ele próprio trauteou uma das mais conhecidas. O Fadista Vadio, Jorge Costa, cantou o Palhaço Sem Futuro, como fazia todas as noites, mas com denotada dedicação ao inesperado visitante. As esquizofrenias musicais e poéticas se sucediam. Camané ficou tão impressionado que escolheu Tejo bar como uma de suas propostas para reportagem da revista Time Out Lisboa.



quinta-feira, abril 09, 2020

Dona Presépia, nosso Mecenas



A ajuda que a magnânima admiradora de nossas brincadeiras artísticas nos ofereceu para a publicação do livro Carmeliana foi tão generosa que deu ainda para publicar o livro O Amor Inexato, do amigo Vital Filho e sobrou para o material da exposição Café Revistinha, cuja renda foi para publicar o livro Nem Sábio Nem Sabiá, do poeta Marcos Flávio. E só agora raspamos o fundo do tacho para a inscrição no Prêmio Jabuti. Bem haja a nossa anônima patrocinadora.
Esse é um caso raro de alguém que pede anonimato ao praticar um ato filantrópico e ainda assim podemos citar o seu nome. Isto porque ninguém conhece a senhora Presépia pelo nome de batismo, dado pelo pai, do qual ela se libertou assim que terminou a escola. Ela é conhecida por um carinhoso diminutivo e socialmente não tem nada que a ligue ao seu nome verdadeiro. A zanga com o pai custou muito a se dissipar. Ela conta que o pai gostava de batizar os filhos com nomes alusivos à data do nascimento. Assim foi com o irmão mais velho, Antonino, que nasceu no dia de Santo Antônio; com as irmãs Isabelina e Pasqualina. Ela nasceu no Natal. Seria Natalina se não fosse a implicância que o pai tinha com uma parenta com esse nome. Poderia ter escolhido Natália ou Noélia, mas não, como ela própria diz: “Deu-me uma cruz da Paixão”. E aconselha: “Há que se refletir bem ao dar nomes aos filhos.”



quarta-feira, março 25, 2020

Mais um arrependido


- Se arrependimento matasse... eu já estaria fedendo.
- Não sei porque. Ele não enganou ninguém.
- Como não enganou?! Mas eu fui burro. Já tinha prometido nunca mais acreditar em promessa de político. É igual aos outros.
- Sinceramente, ainda não entendi. Afinal ele...
- Ele prometeu matar trinta mil. Se matou cinco ou seis foi muito. Disse que começava pelo Fernando Henrique Cardoso. Não matou nem a secretária dele. Prometeu também que não ia ceder nem um milímetro de terra pra índio e é o que se vê: índio colocando corrente em estrada, expulsando garimpeiro e ficando por isso mesmo. Ia acabar com os quilombolas. E no Carnaval... Dançavam na avenida perdendo suas arrobas. Disse que ia transformar reservas em ressorts. Fazer balneários turísticos em áreas de preservação ambiental.Tu viste nascer alguma Cancum? Nem uma puta de uma Punta del Leste! Falou que ia acabar com o Bolsa Família e ainda inventou um décimo terceiro. Falou tanto mal do PT e está fazendo pior. Ia privatizar as universidades e não conseguiu passar pra terceiros nem ao menos uma creche. E muitas outras que nem me vem à cabeça no momento. Olhe que eu nunca vi um político prometer tanta coisa. Ah! Ainda tem a promessa feita depois de eleito: Que ia mandar todos os comunistas pra Ponta da Praia... não mandou sequer um anarquista. No Acre disse que ia metralhar toda a petralha acreana e o Zé do Bingo continua panfletando... Ai ai. É só mais um. Pois por mim podem fazer o que quiserem com o sujeito... Estou tão desiludido. Por mim podem prender o homem, botar ele numa camisa de força como alguns querem, ou até aplicar-lhe o impeachement... Que se lasque! Pra aprender a não enganar um eleitor, cidadão do bem, cristão e temente a Deus.
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Jorge Carlos