domingo, junho 30, 2024

Dia da bola


Domingo. Animação. Nervosismo. Expectativa. Estamos de serviço, mas eu sei que, lá uma vez ou outra, vou ter um dos meus maiores prazeres: Ver a bola rolar! Quanto mais nos aproximamos do estádio, mais me sinto ansioso. Vamos trabalhar, mas eu sei que ela vai passar por mim e vou acompanhá-la com o olhar e imaginar as coisas que faria com ela. Pura brincadeira! A arquibancada está cheia e todos olham para ela. Ela é o centro das atenções. Porém, eles só querem que ela lhes cumpra os desígnios favoráveis. Por vezes, ela escapa do relvado e vai ter com a multidão e eu sinto cá uma inveja! Ingratos! Eles não gostam dela, ou melhor, podem até gostar, mas gostam mais daqueles que a disputam, brincam com ela, acariciam-na, dão-lhe beijinhos... Eu? Gosto tanto que até apetece-me mordê-la. Comê-la! Não, eles não podem gostar mais dela do que eu. Uns, tem a paixão pelo clube, os outros a usam como trabalho. Eu? Pura diversão! Chega a ser bonito o agitar das bandeiras, qualquer delas... Eu gosto mesmo é da bola! O meu colega é que sofre, coitado. É um bom profissional e não desvia a atenção da sua tarefa mesmo quando é o seu time que está a jogar. Sinto a sua angústia. Ele, de costas para o campo, com os olhos pregados na torcida. Só sofro quando não a vejo e entretenho-me a observar aquela multidão que se alegra, entristece ou revolta com resultados, como se a bola não existisse. Bobos! Domingo. Para mim, é sempre assim. Duas horas nisso.

Sinto o ligeiro puxar da trela, ergo o cu da relva e caminho com o colega para a saída. Cabeça baixa, como fui treinado, mas com os olhos a vasculhar na esperança de a terem esquecido nalgum canto do gramado. Mas isso nunca acontece! Será que alguém gosta mais da bola do que eu?

 

Lisboa, 2000

 

 

domingo, junho 23, 2024

A menina que gostava da água

 

Fascínio. Era o que a água exercia sobre a menina de quatro anos que nunca podia banhar-se devido tantos afazeres daqueles que dela cuidavam. Banho de chuveiro? Não tinha graça. De bacia? Não dá nem pra dar um mergulho. Água que a fascinava era muita. Em cachoeira, nas piscinas que formam no regato. Ah! Como seria bom tomar banho assim. Saltar. Esbater-se. Fazer a água respingar por todos os lados. Ver de perto o que há lá por baixo. Brincar de pega-pega com os peixinhos que via na piscina natural da casa rica que cuidavam os que dela cuidavam. E quem cuidava da meninanesse dia de festa na casa pobre dos que cuidavam da casa rica? Uns jogavam à bola, outros bebiam, outros dançavam. Nadar? Nem pensar. Seria intimidade  demais com os patrões que já muito faziam em permitir a festa. E a menina? Não deixem a menina ir para a água. Que é da menina? Meu Deus! A menina não sabia nada sobre divisão de classes.Que é da menina? Meu Deus!

 

No hospital, com tubinhos no nariz. Já com a corzinha rosada das bochechas. Abre os olhinhos. Olha para todos ao redor da cama. Arreganha um sorriso vitorioso e diz:

- Tomei banho!


domingo, junho 16, 2024

Amigos, companheiros à parte


Eram dois amigos. Velhos amigos velhos. Reformados. Que muito se gostavam, mas nunca podiam estar juntos. Se matavam o tempo, lado a lado, era sempre em situaçõesque a um deles desagradava e era rezinga na certa. Um gostava das coisas mórbidas, de morte, de despedida. O outro gostava da alegria,das cheganças,das coisas da vida. Por isso, estavam sempre separados. Se combinavam de irem dar uma volta ao aeroporto, um ia para a Chegada das as boas vindas, desejar boa estada; o outro, ia para a Partida e regalava-se de  dar tapinhas nas costas daqueles com quem metia conversa. Adeus, boa viagem! No hospital, enquanto um ia para o berçário fazer caretas e ouvir a música dos recém-nascidos, o outro ia para o silêncio da  morgue. Igreja? Também um bom passatempo. Mas um só ia a missa de ano, de sétimo dia ou corpo presente, o outro, para batizados, casamentos, também festas para este; para aquele, só velório. Até o jornal dividiam. Um só lia o obituário. Apenas em uma coisa os dois estavam de acordo: era quando da morte de um deles. Quem haveria de ir primeiro. Nisto sim, concordavam.

 

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Deveria ir primeiro o que gostava das chegadas. Com certeza, teria alguém para despedir-se dele e ele teria o prazer de receber o amigo, lá, do outro lado.

 


 

domingo, junho 09, 2024

A mansão dos gatos

 



A simbiose que havia entre o mercado de peixe e o velho casario era tal que, dificilmente alguém se referia a um, isoladamente do outro. Era o Mercado da Mansão ou, a Mansão do Mercado. E as vidas que existiam em ambos, entrecruzavam-se.

O mercado invadiu os terrenos extra-muros da mansão quando os pescadores organizaram a Cooperativa e pressionaram o poder político que nunca chegou a fazer a desapropriação da área que ia do muro à beira do estuário onde os barcos aportavam.

A mansão aceitou a invasão quando já estava em declínio dos faustos tempos em que dominava a região antes de sucumbir ao crescimento da cidade.

As vidas.

O barão – dono da mansão – e sua família que cede à proposta de compra de toda a herdade para a construção de um hipermercado. Os cooperativos-pescadores e trabalhadores do mercado – e suas famílias que organizam uma manifestação de protesto contra a venda. O gato ladrão – o terror do mercado, o terror da mansão.

 

Apesar da perspectiva de um bom negócio, o clima na mansão estava tenso com a tristeza da baronesa pela perda do seu cão. A baronesa não via a hora de mudar-se para um grande apartamento de cobertura em outra cidade longe do cheiro de peixe impregnado em sua vida.  Na roupa. Nos sapatos. Por toda a casa. Na própria filha, que andava de namorico com o novato do mercado e até da gatinha, sempre assediada pelo gato ladrão que foi o causador de sua tristeza. Naquele dia, a baronesa surpreendeu o ladrão a dormir refestelado na almofada da gatinha. Enxotou o gato que foi perseguido pelo cão através do jardim. Foi quando se deu o infortúnio.

- Senhora baronesa – explica o jardineiro – eu não tive culpa. Foi aquele gato. Eu estava agachado a fazer a poda. De repente, o gato passou-me por baixo das pernas. No susto, eu caí sentado. Foi quando o cão saltou a sebe e caiu assim, em cima do tesourão.

A imagem do jardineiro exibindo a tesoura de poda ainda com o seu bichinho de estimação espetado, não saia da cabeça da baronesa que a todos contagiava com sua tristeza.

- Vamos fazer um passeio. – diz o barão, acarinhando a esposa. – Há tanto tempo não utilizamos o barco. E tu gostas tanto de velejar. Vamos todos.

A gatinha também? – pergunta a baronesa chorosa. – Não posso deixá-la aqui, estando no cio, com aquele gato por perto.

- Eu não posso ir. –interrompe a filha. – Tenho aulas de piano.

-Agora vens com...

- Tenha calma, querida. Afinal, o que se passa?

- A nossa filha... Oh, meu Deus... anda de namorico com o novato do mercado. – dirige-se à filha, com ira. – Tu estás como a gata, sua desavergonhada. Oh, meu Deus! Por que esse rapaz não seguiu os passos do pai? Tinha que vir trabalhar no mercado!?

- Sabe  porquê, mãe? Porque como pescador ele não poderia estudar e ele quer se formar. Sbe porquê ele quer se formar, mãe? Porque ele sabe que a senhora e o pai nunca consentiriam o nosso casamento sendo ele um pescador ou um peixeiro... e será peixeiro por pouco tempo. Fique sabendo que ele é o melhor aluno do curso de medicina. – a baronesa fica transtornada. – E quer saber mais...

- Meu cãozinho... pobre...

- Basta! – grita o barão, dando um tapa na mesa. – Amanhã, pela manhã. Vamos todos... a gata... e o cadáver do cão. Faremos, no mar, suas exéquias.

 

A faina diária no mercado começou quase igual a de outros dias não fosse porque naquele dia, ao fim da jornada, iriam discutir a forma de protesto que utilizariam para chamar a atenção de toda a população e as palavras de ordem iam surgindo entre os pregões e fofocas inerentes ao dia a dia do mercado.

- Ó, novato. – grita a vendedora mais antiga, apontando para as traseiras dda banca do novato. – Põe-te a pau com esse gato que ele é ladrão.

- Mas todo gato não é ladrão? – pergunta o novato, mais preocupado em arrumar rapidamente a banca.

- Igual a esse, eu nunca vi. – a vendedora aproxima-se como que a segredar. – É tão ladrão que se tu deres um peixe para ele, ele não aceita. Só serve se for roubado. E escolhido!  Escolhe sempre o melhor. Sabe mais de peixe que muito freguês. É só piscar o olho e zás. É rápido como um gato.

- Pois ele é um gato.

- E não foi o que eu disse? Como um gato. Um gato é como um gato.

O novato ria-se por dentro, mas preferiu não levar a conversa adiante. Havia que terminar o mais rápido possível a montagem da banca para que, assim que sua irmã viesse lhe substituir, ele corresse para a faculdade, pois havia um exame matinal. Ele não tinha prática com a banca e enquanto vai arrumando, seus pensamentos vão para o tempo em que ia para o mar com o seu pai. Aquilo sim é que ele gostava. Era bem miúdo mas,aqui acolá, pegava o seu peixe. E era sempre uma festa. Ma o pai fazia gosto que ele estudasse pelo menos o básico. Com que afinco dedicou-se aos estudos só para mais cedo voltar para o mar mas, o olhar de sua princesinha – filha de barão com baronesa mas, para ele, princesa – cruzou com o seu, por entre as grades do muro da mansão e ele resolveu continuar os estudos. Agora, na faculdade, com os gastos que acarretava, não era possível viverem só da pesca daí, ele ter resolvido montar a banca no mercado e dividir as tarefas com sua irmã que o substituía sempre que precisava, não só para os estudos como também para as escapadas furtivas que dava para ir ter com a sua princesinha. Ainda não tinha terminado a arrumação e um freguesa lhe fazia encomenda.

- Novato, tens que aprender a usar a faca. – diz o colega da banca ao lado. – Com isto aí não vis longe.

- Tenho que praticar, afinal, o bisturi, em breve será a minha ferramenta de trabalho.

- O novato – fala alto a antiga peixeira a chamar a atenção de todos. – não limpa o peixe. Ele faz autópsia.

- Olha pra esta! – diz um pescador, chegando com uma caixa de peixes,- Autopsi. Esta é boa.

- Autópsia – corrige a antiga peixeira. – Sou peixeira...

- ...mas não sou ignorante! – interrompem, os outros, quase que em uníssono. – Já conhecemos a cantiga.

- ...e sei muitas palavras que, só os doutores. No meu tempo de varina, era cesta na cabeça e livro na mão. Cois de médicos então... Era pra me pôr a pau com eles.

- Pronto. Temos cá mais uma doutora. – o pescador tira o bisturi das mãos do novato e entrega para a velha. – toma. Faça aí uma autopsi neste robalo.

- Tenho uma palavra boa que podemos fazer com isto. Emascular o barão.

- Emascu o quê?

- Santa ignorância! Emascular... – faz um psiu para o novato que er o único, para além dela, que poderia conhecer a palavra. – Emascular o barão. – Formou-se um silêncio curioso, pois tudo que se relacionasse com o barão, por esses tempos, despertava muita atenção. Ela conclui, meio a roda. – Cortar os colhões do barão, pessoal!

Algazarra geral. Cada um quer ser o encarregado de tal tarefa. O bisturi passa de mão em mão.

- Dá cá, se faz favor. – pede o novato,preocupado com o instrumento. – Isto custa um dinheirão. É velho, mas vale. – guarda o bisturi. – Vou aprender a usar a faca. Prometo.

- Xô! – grita a velha peixeira, abanando as mãos em direção da banca do novato. – Eu não disse. Roubou-te um, o maroto do gato.

 

A labuta termina e, como combinado, estão em assembleia. Um pescador pede a palavra:

- Para além de se castrar o barão, quê mais podemos fazer para chamar a atenção? – todos riem. – Sim porque falou-se, falou-se e não ficou nada assente.

- Eu proponho que chamemos a TV e deitemos os peixes para a água. – a proposta da vendedora gera comentários favoráveis.

- Posso? – pergunta uma peixeira, erguendo o dedo, timidamente. – Eu penso que devemos oferecer o peixe. À borla.Avisamos a todos que dia tal vai ser tudo de graça.

- Boa! – exclama a anterior. E chamamos a TV, os jornais, a rádio. Todos. Vai ser melhor que e... e... como é mesmo comadre?

- Emascular.

- Isso. Vai ser melhor que emascular o barão.

- Bom. – toma a palavra o presidente da assembleia. – Vejo que esta proposta foi aceite. Para  que dia então marcamos o protesto?

- Para depois de amanhã. – a resposta foi quase unânime. – Amanhã começamos a passar palavra.

- É muito cedo. Temos que dar tempo para o barão voltar. Ele saiu hoje para o mar. – alerta o presidente, acenando para o novato acabado de chegar. – Tu sabes alguma coisa?

- Este é bufo. – comenta, entre dentes, uma colega.

- Eles voltam amanhã. Foram só fazer o funeral do cão. – o novato espera que cessem os risos. – Quanto ao comentário da colega a meu respeito... se me permitem, gostava de dizer só uma coisinha. Eu gosto tanto de lidar com peixe que estou a pensar seriamente em mudar para o curso de Medicina Veterinária e espacializar-me em Ictiologia. Gostava mesmo é de estar no mar, mas... Todos sabem que eu namoro a filha do barão, mas todos sabem que, dificilmente terei o consentimento de seus pais se não conseguir formar-me. Portanto, estejam descansados por que, sem os peixes, a banca, a cooperativa, o mercado... eu não vou a parte alguma. – termina com os olhos marejados.

- Bem. – retoma o presidente. – Amanhã é terça. Marcamos para quarta?

-Sexta. – grita alguém. – Sexta é dia de  peixe!

 

Sexta-feira. Nunca se viu tamanho burburinho no mercado. Nem nas Sextas-feiras santas. Toda a cidade estava solidária com o protesto. Faixas, cartazes, megafones. Vinha gente de longe. Cada um com sua sacola. Festa animada. Com sardinhas assadas, vinho, muita música. Tanto que ninguém ligava mais ao facto do barco do barão ainda não ter regressado. “Deve ter sabido pelo reporte da radiofonia e mudou a rota!”. Pensava a maioria. Alguns achavam que ele fora avisado da manifestação. Mas, o que importava era que a festa estava de caixão à cova. Mercado livre, inclusive, para os gatos que sem as enxotadas, banqueteavam. E o povo cantava. Improvisava rimas.

 

- O barão hoje baldou-se

O barão hoje fugiu

Foi pra casa do irmão

Ninguém sabe ninguém viu

 

- Trinta e um são trinta e um

Um mais um são dois barões

Um fugiu ficou com medo

De perder seus dois...

 

- ...testículos.

- Olha esta!

- Testi o quê?

- Testículos. Sou peixeira...

- ... mas não sou ignorante!

- Ó, dona sabichona, venha ver uma coisa. – diz o novato a arrastar a velha peixeira pelo braço. – Veja, lá. – aponta para a sua banca.

- Ena! Teu velho pegou uma piela! – refere-se ao pai do rapaz que dormia ao pé da banca. – Acorda, homem que a festa está rija!

- Deixe-o. Está cansado. Chamei-lhe para ver o gato. Veja. A senhora disse que o tal gato ladrão só comia se fosse roubado. Pois, hoje é oferecido e ele está a comer.

- Mas veja que ele escolheu muito bem.

- Tem razão. Você sabe que três daquele peixe dá para comprar um livro que preciso. E olhe que é caro. – alguma coisa brilha entre as vísceras do peixe que o gato estava a destripar. – O que foi aquilo?

- Brilhou alguma coisa. Também vi.

- Passa fora! – o rapaz remexe no peixe. – Um anel. É o anel do barão! A festa para como que por encanto. Todos olham em silêncio para o anel procurando imaginar o que poderia ter acontecido. Não! O barão morto? Não! Com quem iriam brigar, agora? O Irmão? Este nunca ligou para a mansão. Nem o conheciam. Nunca mais as implicâncias da baronesa? O novato sem a sua princesinha? Não!

- Pai. – o homem acorda. – Onde você pegou este peixe?

- Isto é peixe de mar alto. – vira-se para o lado. – Eu não estive em mar alto.

- Pai! – sacode o pai, desesperado. – Pai. O barão pode estar morto!

- Mas não era só para castrar o homem?

- A sério, pai. Preste atenção, meu pai. Este peixe veio com o seu carregamento. Procure lembrar onde o senhor o apanhou.

- Só pode ter sido na corrente que vem do farol.

- Pessoal. – o rapaz lança um olhar suplicante para os companheiros. – O barco pode estar encalhado nas rochas.

 

A equipa de resgate seguiu em sentido contrário à corrente e encontrou os náufragos. Todos com vida ainda, mas desfalecidos, com insolação. Havia três dias que o barco tinha ido a pique e eles ficaram agarrados às pedras da ilhota do farol sem água e sem comida. A festa continuou noite dentro.

 

O barão desistiu do negócio, vendeu os terrenos laterais e traseiros para ressarcir o irmão e doou a mansão e o terreno frontal para a cooperativa.

 

Muito tempo já se passou. O Mercado da Mansão continua a fazer a vida da localidade. A Mansão do Mercado continua a embelezar a cidade, mas sua beleza só pode ser apreciada a partir do mercado devido aos altos prédios que cresceram ao seu redor.

 

O barão, com o dinheiro do seguro do iate, comprou um modesto apartamento no centro da cidade, ode vive com a baronesa, a gata – já muito velhinha – e os sete filhos desta com o gato ladrão. A filha do barão tornou-se uma pianista famosa e sustenta a família. O novato não casou com a sua princesinha, mas abraçou a sua antiga paixão – o mar. Entrou para a Marinha e é oficial-médico em uma fragata.

 

O mercado cresceu. A mansão encheu-se de vida. Abriga a sede da cooperativa e os gatos vadios do mercado.

Ah! O jardineiro foi contratado pela cooperativa para cuidar do jardim e dos gatos. Todos os dias, ele distribui comida para a gataria e deixa sempre um peixe no cesto para o gato ladrão roubar.

 

Agradeço a colaboração de Luiz Morgadinho que “matou” o cão e à obra de Paulo Pontes que inspirou certos diálogos deste romancinho.

 


domingo, junho 02, 2024

A equipa ideal

“Fugi. Isolei-me para expiar minha culpa. Qual retiro?! Qual quê?! Covardia mesmo! Culpado e covarde. Ajudei a criar o monstro e deixei-o à própria sorte quando vi que estava fora de controlo. Mas tudo era apenas uma brincadeira. Como poderia imaginar que a coisa iria tão longe? E quem sofre é o amigo a quem aceitei a cumplicidade do crime e abandonei. Ele, o amigo do peito, que não tinha medo de ser feliz... O que para mim era mentira, para ele, era um meio para atingir um ideal. Um sonho. Sei que deu para o torto e nada posso fazer para remediar a situação. Além do mais, nem sei o que foi que aconteceu. Pelo menos, estarei ombro a ombro com o amigo. Para o que der e vier... e se der em cadeia, vou eu dentro. Digo que foi tudo invenção minha. Que ele não sabia de nada. É isso!”

Com esses pensamentos, dirigiu-se para o bar, pois, mal chegara à cidade, fora avisado de que o amigo estava a beber, o que não fazia há mais de três anos, quando deixou os copos para dedicar-se integralmente à paixão de treinar e organizar a equipa de futebol local, que não tinha nada para além de um punhado de jogadores que, às suas próprias custas, mantinham-na no Regional. Ninguém queria responsabilizar-se pela agremiação e ele, com muito sofrimento, conseguiu a proeza de levá-la à Terceira Divisão. Facto que obrigou ao poder político disponibilizar um terreno onde é a sede do clube e a sua moradia e a sua vida e a sua família e as suas alegrias. Tantas alegrias!

 Encontra o amigo com peito sobre a mesa, rodeado de garrafas vazias. Senta-se frente ao companheiro e deixa vir à memória as cenas de tudo que aconteceu até a fuga: “Meu sacana!” – olha ternamente para o amigo que dorme profundamente – “Nunca vou esquecer aquela festa na sede. Aquilo lá tudo em obras e nós, como crianças bobas, festejando o primeiro golo na Terceira Divisão. Todo mundo lá. A Comunicação Social... Jornal. Rádio. Televisão. Eles todos. Os mesmos que antes tinham ido lá para registar o facto de nossa equipa passar todo o primeiro turno sem marcar. Demos o troco. Levamos treze, mas fizemos um... e uma grande festa à pala disto. E foi tão bonito! Quantas festas vieram a seguir. Lembro-me de todas. A da primeira vitória. A da manutenção. A da chegada dos dois profissionais que o comércio local teve que patrocinar, pois íamos de vento em popa. A da subida para a Segunda Divisão... desta, nem se fala! Ah, meu amigo! Tudo em ti era alegria. E foi essa alegria que me convenceu a tocar contigo esse barco. Fiz de tudo no clube. Minha paga? A tua alegria. Alegria que dava um colorido especial à minha vida. Por isso, meu sacana, ia em todas contigo. Ah, como posso esquecer o dia, ou melhor, a noite em que tu me entraste pela casa dentro gritando que um milagre acontecera e que a partir daquele momento tinha um team nas mãos. Por toda a noite, fez esquemas, arquitetou tácticas. Dizia, nervoso, que só faltava um elemento. Alguém para fazer a ligação entre a defesa e o ataque e segredou que tu foste achar esse elo que faltava justo numa rapariguinha. Não, tu não és o louco. Louco fui eu de dar guarida a essa ideia maluca. Porra! Eu já vi falsificarem idade. Até já soube de falsificarem sexo, mas ao contrário, homem passar por mulher... Mas mulher passar por homem... E tu tiveste o teu Dream Team. Tua laranja mecânica, tua dinamáquina. A rapariga era o teu Gérson de saias, teu Puskas menstruado, teu Cruiff de tampão, teu Ademir da Guia de fala fina, Teu Didi de batom.”

Chora. As imagens continuam. Os pensamentos. “Que mal fizeram ao teu sonho, meu sacana?

 A verdade é que o obstinado treinador conseguira formar um team. Quando ele abandonou o amigo, a equipa já chamava a atenção pela positiva e tinha um jogador que saltava aos olhos. E, apesar de, regra sabida, no futebol moderno contarem as aptidões para os esquemas tácticos e técnicos, aquele jogador despontava e já era chamado O Craque.  A equipa ainda estava na Segunda Divisão, mas estava tendo um excelente desempenho tanto no campeonato quanto na Taça. Pelo bonito futebol apresentado, passou a ser  convidada para fazer jogos de exibição nas grandes cidades e até na Capital. E era O Craque pra cá, O Craque pra lá! Só se falava n’O Craque. Outros treinadores acreditavam que aquele craque poderia ter utilidade nas suas equipas e sondavam o seu passe. Até já tinha dirigente querendo que O Craque fizesse um teste na Selecção...

Levanta-se e arregaça as mangas preparando-se para erguer o amigo e levá-lo para casa. “Fugi, meu amigo! Mas voltei e vamos a pique com o nosso barco. Não sei o que te fizeram nem no que vai dar tudo isso, mas estaremos juntos!”

 

Sob o corpo do amigo está uma revista masculina que estampa na capa a foto de uma mulher seminua, com uma bola e vestida com as cores da Selecção e onde se lê: A nudez d’O Craque.

 

Lisboa, 2000