domingo, julho 28, 2024

O mecânico e o escritor

 


Carro igual aquele, só naquela oficina tinha conserto. E, naquela oficina, só aquele mecânico dava-lhe jeito e, quase toda semana precisava de um reparo. Coisinha aqui, coisinha ali. Parte eléctrica e mecanismo. De tudo o oficial sabia. Conhecia aquele carro como a palma da mão. Ao dar na ignição, já sabia de antemão que era uma biela, carburador, coisa assim. Certa feita, ao reparar a fiação, encontrou no porta-luvas o início de um manuscrito. Primeiro acto de uma peça de teatro. A primeira do artista escritor proprietário do automóvel. Como será que o autor vai resolver essa situação? Com o escritor, raramente se encontrava. Imaginava o desfecho. Mais uma semana e lá estavam mais umas laudas riscadas e rabiscadas e a história a desenrolar-se. O escritor escrevia, o mecânico imaginava. A trama mexia com os dois. O drama. Três semanas que o enredo não avançava. Era hora do almoço. A hora de remexer o porta-luvas. Podia tirar uma soneca, a bem merecida sesta. Jogar dominó com os colegas. Trocar anedotas. Quantas das novas que ele perdia e a história não andava. Chegou a pegar no lápis para sugerir situações mas, estancou e pensou: “Também eu sou um artista no meu ofício. Ninguém manja mais disso do que eu. E, se o dono dessa joça vier meter o bedelho no meu trabalho, eu não vou gostar. Cada macaco no seu galho!” Esperou mais quinze dias e a peça chegou ao fim para gáudio dos dois. Entrou em cartaz, fez sucesso. O mecânico não foi ver, mas deu o ‘parabéns’ ao escritor pela obra bem executada. O mesmo parabéns que recebia quase toda semana.

 

O escritor era o Millôr Fernandes e o mecânico, o Betinho, meu pai.

 

Lisboa, 3 de agosto de 2001.


domingo, julho 21, 2024

Manezim Rodrigues

 

Manezim Rodrigues. ‘Seu’ Manezinho. Manuel Rodrigues de Oliveira (que é nome de uma escola), ‘Seu’ Mané Rodrigues. Manezim Rodrigues era médico sem nunca ter ido à faculdade. A única vez que entrou numa escola, foi na inauguração da que lhe deram o nome. Pequena homenagem pelos serviços prestados à comunidade pugnando pela saúde e educação públicas. Único parteiro num raio de muitas léguas, quantas vezes era chamado de madrugada. Lá ia seu Manezinho com o burro Dourado. Paletó em uma só manga vestido e o braço descoberto puxando o Dourado, burro manso que vi montado por ele uma só vez, para fotografia. Nunca percebi o por quê de arrear o burro e levá-lo, se nunca montava. Para servir de companhia no sobe e desce serra em trilhos mal batidos na mata ou para servir de ambulância caso o problema da paciente exigisse deslocação. Para transportar as compras que fazia no retorno, não era, pois muitas vezes o vi chegando em casa com os sacos de mantimentos sobre o ombro vestido pelo paletó. Poderia ser para que o burro o conduzisse ao caminho de casa quando tomava uma carraspana na venda ou em algum velório ou festa de batizado ou outras a que era chamado pois esses convites eram uma maneira de retribuir os serviços prestados sempre de graça e, também porque todos gostavam de ter Manezim à mesa. Anedotas, boas histórias, tantos causos! Coisas que vivia e que lia em extensa biblioteca incomum para uma casa camponesa: Livros de plantas em várias línguas; compêndios de medicina; revistas atualizadas levadas por um filho que morava na cidade; enciclopédias; alguns romances; uma Bíblia e, bem velhinha, já sem uso, uma cartilha carcomida pelo tempo e pelas traças. Um copo de cerveja e dois dedos de conversa era o prazer só comparado ao de ver o pequeno cafezal florescer. Comer também era um prazer. Entre um turno e outro da capina, eram de duas a três horas à mesa onde reinava soberano o prato de caldo de feijão. A sesta tirada e, a enxada na mão outra vez. Enxada que manejava com a mesma destreza com que utilizava o seu bisturi, um canivete que trazia sempre afiado e que lancetava os nosos furúnculos, tirava os bernes do gado e, façanha maior, abriu o peito de um colono no portão do terreiro da casa para bombear a aorta. Daí, os dois dedos de prosa muitas vezes entrarem pela madrugada e a cerveja não ser uma só. Para ilustrar melhor seu Manezim, vou contar um caso:

A festa no arraial da fazenda vizinha ia animada. No terreiro, a sanfona não parava e os pares só largavam a dança quando a carne já estava no ponto. Muita comida e muita bebida. à varanda, Manezim Rodrigues sorvia uma cerveja com a calma que sempre o acompanhou, pois tinha tempo para tudo. Um gole, uma anedota. Outro gole, um causo. Eis que chega um rapaz esbaforido pedindo socorro, nervoso, agitado. “Seu Manezim, teve uma briga lá atrás. Seu Manezim, corre, meu irmão foi esfaqueado! Depressa!” Seu Manezim pegou um guardanapo de pano, entregou ao rapaz e disse:

- Vai lá e embebeda este pano no sangue e traz de volta.

Os poucos que não foram ver a confusão e ficaram na varanda, olhavam para ele impressionados  com tamanha calma e sem perceberem a intenção daquela atitude tão inusitada. O rapaz voltou, a correr, e lhe entregou o pano manchado. O senhor Manuel Rodrigues de Oliveira olhou bem o pano quase a cheirá-lo, pousou-o tranquilamente na mesa, pegou a caneca e disse, nas calmas:

- É sangue venoso. Há tempo para terminar esta cerveja.”


domingo, julho 14, 2024

Lia, a cegonha que gostava do frio



Era Lia, uma vez, uma cegonha que gostava do frio. E mais, detestava o calor. Que fazer? Era diferente. O calor fazia-lhe sofrer mais que a solidão sofrida por não ser igual às da sua espécie. Voava sempre mais alto a procurar as aragens frescas das alturas, onde planava por horas a fio e procurava sempre os sítios mais altos para  fazer o seu ninho. Quando chegava o Inverno, todas as cegonhas migravam para o Sul, menos Lia. Toda uma estação longe do escárnio que lhe atiravam pelo pecado de não ser igual. O crime da diferença. Todos os anos era assim. E Lia se cansou. Cansou-se e quando o Inverno chegou e todas migraram para Sul, Lia foi para o Norte. Cada vez mais para o frio e mais para longe das maledicências das comadres. O Norte. O frio. Que bom! Alto. Sobre as nuvens. A ponta metálica de uma torre se lhe apresentava como um bom local para fazer um ninho. Pousa. Os sons que lhe chegavam anunciavam-lhe que a vida seria dura. O nevoeiro dissipou-se. Que cidade grande! Difícil fazer o ninho. Difícil buscar comida. A solidão maior. Mas, foi a sua escolha.

 

E, hoje, a cidade de Paris tem uma nova atração. Se se olhar com muita atenção, pode-se ver uma cegonha em elegantes voos circulares ao redor da Torre Eiffel. Mas há que se olhar com muita atenção.

 

À Maiara Mariana

terça-feira, julho 09, 2024

De como e porquê Paco trocou suas férias no Algarve por um clássico da Literatura

 



Francisco e, não consegui decifrar o segundo nome na assinatura, mas com a alcunha de “Paco”, tinha um trabalho na Espanha que lhe tomava muito tempo e ainda não rendia o dinheiro suficiente para umas férias no Algarve, coisa que todos os colegas já tinham feito. Certa vez, ganhou um gordo bônus e foi desta. Iniciou o périplo por Santiago de Compostela. Foi à Porto 2001; uma visita rápida a Coimbra e uma boa parada em Lisboa, antes da última semana reservada para o destino principal. Na pensão, conheceu uma rapariga sueca que retornava do Algarve. Loura, de olhos azuis, tez temporariamente vermelha... De virar a cabeça a qualquer mouro. Um idílio iniciou-se entre eles. Um romance muito rápido já que ela só ficaria um dia em Lisboa antes de voltar para a Suécia. Da noite passada na pensão, nada sei mas, ao balcão do Tejo bar, enquanto servia-lhe um uísque sem gelo, ouvia o seu lamento – E balcão de bar é como um confessionário.

- Que vergonha! – iniciou, procurando as palavras em português – O que primeiro atraiu sua atenção foi o facto de eu ser espanhol e ela é uma apreciadora das coisas de Espanha... Acredita que ela está estudando castelhano só para ler Dom Quixote no original? E “yo”... Eu...Eu nunca li Dom Quixote! Nem no tempo de escola. Que “verguenza!”

- Não liga pra isso, não,companheiro – disse procurando animá-lo – Eu enquanto português,nunca li Os Lusíadas e, como brasileiro, nunca li por exemplo,Casa Grande e Senzala... e não tenho complexo por isso. Ele insistiu. Arranjei-lhe um exemplar do clássico de Cervantes,em castelhano. Todos dias,às horas mortas, ele vinha ao Tejo bar, pedia um uísque sem gelo e punha-se a ler. Muitas das vezes, deixava-o sozinho. Quando voltava ao bar, lá estavam um conto para a bebida e o marcador algumas páginas mais adiante. Foi assim até ao último dia em que tinha que voltar para o trabalho e deixou o livro com uma dedicatória de agradecimento e, como gorjeta, o dinheiro que gastaria na estada no Algarve. Também “gracias” Paco. De como, já sabemos,  agora, o porquê, conjectura-se. Será que sim, será que não ou será que será? O que acham?

 

Esse exemplar do Dom Quixote ofereci-o ao cliente amigo do Tejo bar, Aguinaldo Parmejane, um sujeito tão quixotesco que, se fosse com ele a história,com certeza faria ainda mais.Aposto que ele seria capaz até de aprender sueco e ver todos os filmes do Bergman.