Carro
igual aquele, só naquela oficina tinha conserto. E, naquela oficina, só aquele
mecânico dava-lhe jeito e, quase toda semana precisava de um reparo. Coisinha
aqui, coisinha ali. Parte eléctrica e mecanismo. De tudo o oficial sabia.
Conhecia aquele carro como a palma da mão. Ao dar na ignição, já sabia de
antemão que era uma biela, carburador, coisa assim. Certa feita, ao reparar a
fiação, encontrou no porta-luvas o início de um manuscrito. Primeiro acto de
uma peça de teatro. A primeira do artista escritor proprietário do automóvel.
Como será que o autor vai resolver essa situação? Com o escritor, raramente se
encontrava. Imaginava o desfecho. Mais uma semana e lá estavam mais umas laudas
riscadas e rabiscadas e a história a desenrolar-se. O escritor escrevia, o
mecânico imaginava. A trama mexia com os dois. O drama. Três semanas que o
enredo não avançava. Era hora do almoço. A hora de remexer o porta-luvas. Podia
tirar uma soneca, a bem merecida sesta. Jogar dominó com os colegas. Trocar
anedotas. Quantas das novas que ele perdia e a história não andava. Chegou a
pegar no lápis para sugerir situações mas, estancou e pensou: “Também eu sou um
artista no meu ofício. Ninguém manja mais disso do que eu. E, se o dono dessa
joça vier meter o bedelho no meu trabalho, eu não vou gostar. Cada macaco no
seu galho!” Esperou mais quinze dias e a peça chegou ao fim para gáudio dos
dois. Entrou em cartaz, fez sucesso. O mecânico não foi ver, mas deu o ‘parabéns’
ao escritor pela obra bem executada. O mesmo parabéns que recebia quase toda
semana.
O escritor era o Millôr Fernandes e o mecânico, o
Betinho, meu pai.
Lisboa, 3 de agosto de 2001.