Depois
que duas personagens relevantes dessa história morreram podemos contá-la. E a
contamos eu e o Correinha, duas outras personagens também relevantes, mas ainda
vivas.
Corria
os tempos da grande inflação. Junto com a atriz Mira Fragoso andava às voltas
para arranjar dinheiro para levarmos a peça de teatro Frei Molambo a Portugal.
Ela e eu nos empenhávamos em várias tarefas na tentativa de ser mais rápido que
a inflação. Quando se conseguia o dinheiro das duas passagens, já não dava para
uma. Para se ter uma ideia de como era no tempo em que pela manhã o quilo do
açúcar tinha um preço e à tarde tinha outro: Vendi um quadro num salão de artes
plásticas, em Belém, que foi pago com um cheque de banco estrangeiro e quando
consegui descontá-lo não cobriu nem a despesa que tive com uma moldura simples.
Ainda tive prejuízo com o envio.
Correinha
para fazer um agrado ao doutor Parigot, por quem tinha grande estima,
ofereceu-lhe uma prancha de boa madeira para ser o indicativo de suas terras. Pediu-me que esculpisse uma placa com o nome
da fazenda do renomado médico, que com certeza pagaria um bom preço, apesar de
eu não saber calcular o valor a pedir por um serviço que fugia um pouco da
minha alçada. Comprei os artefatos necessários e pus-me à luta que era
assistida diuturnamente pelo também doutor Andreoli, este, ortodontista, que
morava no mesmo terreno onde nos fundos morávamos Pimentinha, João, Mira e eu.
Entre uma e outra casa, os cavacos se espalhavam e a grande prancha ia deixando
aparecer o nome Flor de Lis. Apareceu. Lindo. Envernizado e com todos os
cuidados levado ao feliz homenageado que, devido ao avançado da idade, já havia
perdido a noção do dinheiro ou do tempo em que vivia e mandou que fizesse um
cheque de tal valor que não pagava nem o verniz e as lixas. O pobre do
Correinha não sabia onde enfiar a cara. Chega deu pena do rapaz. Pediu-me
desculpas sem saber o que dizer e passou evitar se encontrar comigo ou com Mira
que, se tivéssemos abiscoitado pelo menos oitocentos cruzados novos a mais já
teríamos as passagens na mão.
Ainda
estava catando cavacos do terreiro quando Andreoli aparece à porta dos fundos e
estala um cheque chamando a minha atenção. Mil cruzados novos novíssimos. De
quem? Do doutor Parigot. Foi assim: O obstetra procurou o ortodontista. Segundo
o dentista, chorava feito criança. Os dentes estava amolecendo e o médico não
queria que acontecesse como com o seu paizinho cujos dentes caíram. Existe uma
questão de ética em que um colega evita de cobrar serviços prestados a outro.
Mas a indignação por me verem tantos dias de labuta perdidos fez com que o
amigo Andreoli inventasse a desculpa de que o montante seria para o material
que deveria importar. Ufa!
Como
dizer isso para o aperreado Correinha. A desculpa foi que a Mira jogou no bicho
o número do cheque do doutor Parigot e acertou na cabeça. Correinha ficou muito
contente. E todos ficamos contentes.
A
foto da placa, que ainda está viva, é do Alessandro Gondim.
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