quarta-feira, agosto 31, 2022

A PLACA

 


Depois que duas personagens relevantes dessa história morreram podemos contá-la. E a contamos eu e o Correinha, duas outras personagens também relevantes, mas ainda vivas.

Corria os tempos da grande inflação. Junto com a atriz Mira Fragoso andava às voltas para arranjar dinheiro para levarmos a peça de teatro Frei Molambo a Portugal. Ela e eu nos empenhávamos em várias tarefas na tentativa de ser mais rápido que a inflação. Quando se conseguia o dinheiro das duas passagens, já não dava para uma. Para se ter uma ideia de como era no tempo em que pela manhã o quilo do açúcar tinha um preço e à tarde tinha outro: Vendi um quadro num salão de artes plásticas, em Belém, que foi pago com um cheque de banco estrangeiro e quando consegui descontá-lo não cobriu nem a despesa que tive com uma moldura simples. Ainda tive prejuízo com o envio.

Correinha para fazer um agrado ao doutor Parigot, por quem tinha grande estima, ofereceu-lhe uma prancha de boa madeira para ser o indicativo de suas terras.  Pediu-me que esculpisse uma placa com o nome da fazenda do renomado médico, que com certeza pagaria um bom preço, apesar de eu não saber calcular o valor a pedir por um serviço que fugia um pouco da minha alçada. Comprei os artefatos necessários e pus-me à luta que era assistida diuturnamente pelo também doutor Andreoli, este, ortodontista, que morava no mesmo terreno onde nos fundos morávamos Pimentinha, João, Mira e eu. Entre uma e outra casa, os cavacos se espalhavam e a grande prancha ia deixando aparecer o nome Flor de Lis. Apareceu. Lindo. Envernizado e com todos os cuidados levado ao feliz homenageado que, devido ao avançado da idade, já havia perdido a noção do dinheiro ou do tempo em que vivia e mandou que fizesse um cheque de tal valor que não pagava nem o verniz e as lixas. O pobre do Correinha não sabia onde enfiar a cara. Chega deu pena do rapaz. Pediu-me desculpas sem saber o que dizer e passou evitar se encontrar comigo ou com Mira que, se tivéssemos abiscoitado pelo menos oitocentos cruzados novos a mais já teríamos as passagens na mão.

Ainda estava catando cavacos do terreiro quando Andreoli aparece à porta dos fundos e estala um cheque chamando a minha atenção. Mil cruzados novos novíssimos. De quem? Do doutor Parigot. Foi assim: O obstetra procurou o ortodontista. Segundo o dentista, chorava feito criança. Os dentes estava amolecendo e o médico não queria que acontecesse como com o seu paizinho cujos dentes caíram. Existe uma questão de ética em que um colega evita de cobrar serviços prestados a outro. Mas a indignação por me verem tantos dias de labuta perdidos fez com que o amigo Andreoli inventasse a desculpa de que o montante seria para o material que deveria importar. Ufa!

Como dizer isso para o aperreado Correinha. A desculpa foi que a Mira jogou no bicho o número do cheque do doutor Parigot e acertou na cabeça. Correinha ficou muito contente. E todos ficamos contentes.

A foto da placa, que ainda está viva, é do Alessandro Gondim.

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