O LADRÃO DE SONHOS
Era-lhe dura a vida. Trabalho
ainda não faltava. Faltava o dinheiro para vida melhor. Pelo menos, para
assentar a cabeça e trabalhar mais, mas naquilo que era de gosto. E, como o de
gosto lhe regalava a vida, trabalhava. Trabalhava no que não rendia nem para a
renda, mas rendia na esperança de um dia concluir a obra de gosto mesmo que não
se lhe rendesse. Bastava-lhe o prazer de acabaram e dizer: é bom, gosto disto!
Buscava. Buscava na Natureza, nas histórias, na História, nos contos, poemas e
através de fantasias e variações sobre outros temas. Parcerias, não, pois os
seus dois trabalhos transformaram-no num solitário – o trabalho de acompanhar
que, ainda que escasseasse no mercado devido às novas tecnologias, não lhe
faltava graças à sua polivalência que lhe permitia tanto executar um violão em
gravação de estúdio, quanto fazer a percussão em uma orquestra de Mambo ou
mesmo substituir a tuba na fanfarra do bairro e o trabalho que lhe acompanhava
mal terminava o outro., no caminho para o quarto, na solidão da pensão, no café
da esquina, a perambular pela cidade, nos campos, nas tournées… sempre a tecer os sons e espaços à procura do que seria a
remissão do pecado de tanto trabalhar. Concentração, meditação, embriaguez,
laboratório, nenhum mecanismo lhe proporcionava a inspiração para a obra que
satisfizesse a sua exigência. E, só a sua, já que nenhum produto era tornado
público; Se não é bom para mim, não será para ninguém! pensava nos raros
momentos em que a cabeça não estava ocupada pelos sons e silêncios que nem
sequer chegavam ao papel.
Um sonho.
Lindo tema. Não precisava nem
desenvolvê-lo. Estava lá. Todo. Sentiu vontade de passá-lo para a pauta mas,
podia esperar. Havia que desfrutar. A felicidade. A missão cumprida. Há vagar.
Seria só dele. Por algum tempo só ele ouviria aquela prenda abençoada por
Morfeu.
Mais uma esquina da vida.
O tema chegava-lhe agora pelos
ouvidos. Apressou-se na direcção da loja de discos de onde vinha os acordes que
nunca trauteara ou assobiara. Como? Uma peta do inconsciente. Poderia ser algo
que já ouvira em outros tempos. Ainda bem que não fui registá-la. Que vexame!
Queria saber quem fizera coisa tão bela. “Foi o Maestro” – disse o vendedor da
loja demonstrando uma surpresa simpática e completou com simpatia: “Pois não é
que o Maestro agora está a lançar-se como compositor. É a sua primeira obra de
autoria.”
O Maestro!
A fama do regente era tal que o
artigo e a função bastavam-lhe como epíteto. O Maestro. Não conhecia o maestro
pessoalmente tampouco tivera ocasião de trabalhar sob a batuta deste. Muito
conhecia de sua vida e de seus feitos como tantas pessoas pois a fama do
maestro era invulgar e disputava a média com grandes vedetas da música pop e do desporto.
Intriga.
Ou ele e o maestro ”beberam” da
mesma fonte ou tratava-se de um caso de grande coincidência o que, legalmente,
nunca serviria de argumento – a criação musical é livre, a Lei, não.
Foi só um sonho.
A vida continuava. Dura. Cada vez
mais.
Sonho.
Completo. Só melodia, harmonia,
ritmo, nenhuma imagem, três andamentos perfeitos e o título: Soneto Sinfónico.
Não. Não poderia ser uma brincadeira. Lembrar-se-ia se já tivesse escutado algo
tão arrojado. Era seu método de trabalho. Dormir. Sonhar. Duas coincidências?
Impossível! “Essa é minha…” – pensou, brincalhão – “peguei primeiro.” E, com
toda presteza, colocou-a na pauta. “Meu passarinho!” Mas, seria isso uma
inspiração? – já a caminho da sociedade que protege os direitos dos autores –
Mas, também não é assim, mesmo quando estamos acordados? Ela vem-nos quando
menos esperamos. Não era altura para conflitos interiores. “é minha e pronto!”
“Que coincidência.” – disse o responsável pelo registo – “Não faz muito tempo,
registei uma partitura com esse mesmo título ou parecido. Deixe cá ver. É, é o
mesmo, Soneto Sinfónico. Mais uma do Maestro. Foi… há precisamente uma semana.”
E, com todo o tacto diplomático exigido em tais circunstâncias, acrescentou –
“Mude o título e já está!” “Deixe estar, obrigado.” Saiu da secção com a
certeza de que se quisesse obter o registo teria que alterar toda a estrutura
para além do título. E a certeza confirmou-se. Lá estava nas rádios, tevês e
lojas: todas as notas, todos os compassos… idênticos… as pausas. Era a
coqueluche do momento. O Soneto Sinfónico. O seu passarinho.
Os sonhos tornaram-se mais
constantes. Já se dava ao luxo de escolher. O trabalho assim era fácil, sem
sacrifícios. Bastava fechar os olhos. Um cochilo, uma suite… Árdua era a tarefa
de transição. Sabia que tinha que ser rápido. Dias e dias a escrever negligenciando
o outro trabalho, o das rendas. E as poucas economias esvaziavam-se. Já estava
acostumado a conviver com a pobreza, mas a perspectiva de chegar às raias da
miséria, assustava-o. Ainda assim, não parava. Era a sua grande oportunidade.
Os últimos compassos foram transcritos já ao balcão do registo. Ao traçar a
barra dupla, pergunta, quase que sem querer, pelo maestro. “Tem novidades?”
“Esse não para” – disse o funcionário pegando um maço de folhas – “hoje mesmo,
pela manhã, trouxe esta colectânea. Veja.” Bastou uma vista d’olhos sobre os
sete primeiros compassos para saber que o seu registo seria adiado, ainda uma
vez.
O maestro era mais rápido. Tinha
modernos programas de computador e uma grande equipa a qual, mal acordava,
punha em acção. Em pouco tempo O Maestro estava com novo álbum na praça. Com
tudo. Até os sonhos que ele desprezara.
De fome ainda não padecia, mas já
perdera o quarto da pensão. Porém o catre de agora não impedira os sonhos. O
único prazer. Dormir era o seu único trabalho. Não transcrevia mais. Para quê?
Qualquer coisa que agora lançasse teria sempre a marca do outro. O estilo
inconfundível do Maestro. Estava acabado. Ele estava acabado, mas queria ver o
outro de perto. Olhos nos olhos e definir o que sentia. Parecia ódio e era a única
coisa que o movia. A oportunidade surgiu numa apresentação pública da obra do
Maestro, pela Orquestra Metropolitana, regida pelo próprio. Antes da
conferência de imprensa, cruzaram-se. o elogio que lhe saiu da boca vinha-lhe
da alma. Pejava sinceridade. “Bela obra! Bravo Maestro!” O obrigado foi o mesmo
dirigido a qualquer desconhecido. Realmente o maestro não o conhecia. Às
perguntas de praxe de como era o método de trabalho, de onde vinha a
inspiração, a que atribuía o gosto do grande público por sua obra e essas
coisas, a resposta, que revelava uma modéstia desmedida: “Eu não faço nada. Eu
roubo. Roubo os sonhos. Assim como um pintor coloca o inconsciente colectivo na
tela, eu coloco-os na pauta. Sou um ladrão de sonhos.” “Filho da puta! Ainda
confessa.” Era ódio, tinha a certeza. O ódio solitário.
O catre e já a fome.
O sonho dos sonhos. O estilo era
o mesmo, mas a grandiosidade superava tudo que já havia sonhado. Entra na
grande vivenda do maestro com todas as facilidades que os sonhos concedem. Para
à porta do quarto onde o maestro dormia vestido de fraque, embriagado de mais
uma fausta noitada. O maestro olha-o como se já o conhecesse de muito. “Foi a
coisa mais linda que tu já fizeste.” E acrescenta, com uma intimidade
debochada. “Pena que não possas representá-la” “Posso sim. Posso fazer dela uma
elegia. Uma ode. Vou chamá-la” – com as mãos no pescoço do outro – “Requiém O
Maestro” – aperta – “a minha homenagem post-mortem
ao Ladrão de Sonhos.” – aperta até aplacar todo o ódio. Acorda. Cata algumas
moedas atiradas pelos noctívagos e dirige-se ao café, um pouco frustrado por
ter sido só um sonho, mas feliz por ter sonhado. O rádio do café anunciava em
edição extraordinária: “Morte misteriosa leva-nos o Ladrão de Sonhos…” A
notícia entristeceu a quase todos.
Esta história eu sonhei. Por isso, fico meio sem jeito de assiná-la, pois não sei até que ponto podemo-nos assumir como autor intelectual de uma obra na qual não utilizamos o intelecto. Mas, por via das dúvidas, vou creditar a mim a sua autoria, assiná-la e registá-la pois… nunca se sabe…
A todos que pugnam pelos direitos dos autores.
Jorge Carlos
2 comentários:
Muito bom!
Muito bom!
Enviar um comentário