domingo, abril 28, 2024

Humprey Bogart do Rossio

 


Era bonito passar pelo átrio do metro e admirar aquele desenho aquele desenho a giz, no piso. Só os menos sensíveis ou os muito apressados não diminuíam a marcha para apreciar aquele olhar enigmático do actor-personagem que uma criança em gestos fortes, todas as manhãs, colocava cores que, apesar de vivas, não lhe tiravam o ar soturno que sempre caracterizou aquele que, em tempos, arrebatou tantos corações e influenciou tantos comportamentos. À tarde, o desenho empalidecia pelas pisadas mas, pela manhã, compensava andar um pouco mais para pegar o metro no Rossio e ver a quantas andava o Humphrey que a cada dia parecia mais vivo,mais colorido e até já esboçava um sorriso alegre nada debochado ou cínico daqueles que lhe fizeram a fama. O Humphrey, a criança, a lata e o tilintar das moedas eram o prenúncio refrescante de um bom dia de trabalho. A pausa meio a tantas correrias. Desviei o  meu trajecto durante duas semanas até que houve uma alagação e o Humphrey apagou-se por completo. Ainda passei pelo Rossio algumas vezes na esperança de o ver novamente. Nada. Um dia, deparei com a criança sentada na calçada rabiscando o chão com um caco de tijolo, sem a lata e entristecida. Indaguei-lhe: “Então, e o Humphrey?!” “Pois é, doutor, a estação encheu-se d’água e eu fiquei à nora.” “Por que não retoma o trabalho?” A criança, esfregando a mão sobre os rabiscos, respondeu aborrecida: “O camone que fez já bazou há muito tempo.” Fui pego de surpresa. Fiquei tão indignado que despejei meu descontentamento com uma veemência tão grande e em tão alto tom que logo juntou-se uma roda de curiosos:”Com que então não foste tu quem fez o Humphrey... eu, que falava p’ra todo mundo a teu respeito... e as moedas... não imagina a pipa de massa que deixei na tua lata... e vens me dizer que não foste tu... saíste-me um grande aldrabão, isto, sim...” A criança assustada, com a mão em atitude de defesa, prevendo uma estalada, olha em volta como a procurar uma brecha entre os curiosos e arremata,antes de pisgar-se: “Eh, doutor! E o trabalho de restauro não vale nada, é?”

 

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