A mendicidade também
tinha sua divisão de classes. Ele, um pobre coitado, exercendo a função de sol
a sol, sem ter onde cair morto, nem ter onde cair no sono já que o catre era
sempre improvisado, ora num sítio, ora noutro, consoante os humores dos agentes
da autoridade. De momento, repartia com outros desafortunados, o passeio do
centro comercial onde, à noite, protegiam-se com caixas de papel-cartão. O
outro, rico, com família, boa casa,exercia a mendicância com um bom andicape,
era cego. Sem vícios, a trabalhar muito, com um ponto bom, autorizado pela
Câmara e a caixa, só podia ficar rico. Ele teve que perder a vergonha, estender
a mão e inventar uma boa história. O outro, só teve que perder a visão. E as
pessoas comuns têm mais medo de perder a visão que a vergonha. Quantos
vai-trabalhar-vagabundo ele já ouvira e ao outro, que já nem precisava mais
trabalhar e fazia-o a contra gosto da família, só lhe dirigiam palavras
piedosas e moedas que gastava junto com os piolhentos do centro comercial
armando-se em bom samaritano chegando a passar noites e noites com os
malcheirosos sendo necessário os filhos doutores irem buscá-lo, sob ameaças de
pô-lo num asilo. Bom samaritano, uma ova! Andava a se fazer para a sua mulher,
isto sim. E tanto fez que conseguiu. A mulher, bêbada; o outro, cego, não
repararam que o muro era baixo. Todo mundo viu. Ele viu. Os filhos do outro
viram e, o pior, todos viram que ele viu. Agora ele ainda tinha que rezar pela
saúde do outro. Bastava o cego arrebentar a cara num poste que iriam dizer que
foi ele, que de cara quebrada ficou, pois o cego manejava bem a a bengala e
acertou-lhe duas bastonadas quando ele, não contendo a fúria avançou para o
cego. Era muito azar. Traído, de cara partida e sem poder vingar-se. E, como o
azar nunca vem sozinho, a mulher não quis mais dormir com ele. Os maus
pensamentos tomaram conta do seu cérebro a tempo inteiro. Mesmo a dormir,
sonhava que estava a matar o outro. Ódio. Vingança. Vingança. A cabeça fervia.
Vingança. Vingança.
O som de uma ave
canora lhe chamou a atenção. Parou. Ergueu a cabeça.Fechou os olhos e respirou
fundo. A alma tornou-se mais leve. Que coisa tão linda. Os olhos encheram-se
d’água num expurgo doce e suave. Olhou para dentro da loja de aparelhos
eletrônicos. Mas, onde está o canário? O som vinha de um pequeno aparelho que o
vendedor mostrava a um cliente. Novidade. Último modelo. Promoção especial de
lançamento. Enganado por um brinquedo! “Mas já fui enganado até por mulher feia
e aleijada.” Lá estavam novamente os maus pensamentos. “Vou comprar uma
geringonça dessa!” Assim pensou, assim fez. Negociou o ponto e pegou um bom
dinheiro. Banhou-se. Cortou o cabelo. Tirou a barba. Vestiu roupa nova. Óculos
escuros. Pagou à vista e aprendeu o manuseio. Agora, havia que ter paciência.
Fazer tudo direitinho. Fazer os cálculos e aguardar o momento propício quando
todos os elementos conjuminassem. Muitas simulações até, que calhou.
O cego saído ponto,
à tardinha. Pouca gente na rua. Um automóvel imprudente aproxima-se da
passadeira em alta velocidade. O cego avança confiante no sinal sonoro emitido
junto ao poste ainda com o sinal vermelho. Ninguém viu.
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