domingo, maio 26, 2024

Cega traição

 


A mendicidade também tinha sua divisão de classes. Ele, um pobre coitado, exercendo a função de sol a sol, sem ter onde cair morto, nem ter onde cair no sono já que o catre era sempre improvisado, ora num sítio, ora noutro, consoante os humores dos agentes da autoridade. De momento, repartia com outros desafortunados, o passeio do centro comercial onde, à noite, protegiam-se com caixas de papel-cartão. O outro, rico, com família, boa casa,exercia a mendicância com um bom andicape, era cego. Sem vícios, a trabalhar muito, com um ponto bom, autorizado pela Câmara e a caixa, só podia ficar rico. Ele teve que perder a vergonha, estender a mão e inventar uma boa história. O outro, só teve que perder a visão. E as pessoas comuns têm mais medo de perder a visão que a vergonha. Quantos vai-trabalhar-vagabundo ele já ouvira e ao outro, que já nem precisava mais trabalhar e fazia-o a contra gosto da família, só lhe dirigiam palavras piedosas e moedas que gastava junto com os piolhentos do centro comercial armando-se em bom samaritano chegando a passar noites e noites com os malcheirosos sendo necessário os filhos doutores irem buscá-lo, sob ameaças de pô-lo num asilo. Bom samaritano, uma ova! Andava a se fazer para a sua mulher, isto sim. E tanto fez que conseguiu. A mulher, bêbada; o outro, cego, não repararam que o muro era baixo. Todo mundo viu. Ele viu. Os filhos do outro viram e, o pior, todos viram que ele viu. Agora ele ainda tinha que rezar pela saúde do outro. Bastava o cego arrebentar a cara num poste que iriam dizer que foi ele, que de cara quebrada ficou, pois o cego manejava bem a a bengala e acertou-lhe duas bastonadas quando ele, não contendo a fúria avançou para o cego. Era muito azar. Traído, de cara partida e sem poder vingar-se. E, como o azar nunca vem sozinho, a mulher não quis mais dormir com ele. Os maus pensamentos tomaram conta do seu cérebro a tempo inteiro. Mesmo a dormir, sonhava que estava a matar o outro. Ódio. Vingança. Vingança. A cabeça fervia. Vingança. Vingança.

 

O som de uma ave canora lhe chamou a atenção. Parou. Ergueu a cabeça.Fechou os olhos e respirou fundo. A alma tornou-se mais leve. Que coisa tão linda. Os olhos encheram-se d’água num expurgo doce e suave. Olhou para dentro da loja de aparelhos eletrônicos. Mas, onde está o canário? O som vinha de um pequeno aparelho que o vendedor mostrava a um cliente. Novidade. Último modelo. Promoção especial de lançamento. Enganado por um brinquedo! “Mas já fui enganado até por mulher feia e aleijada.” Lá estavam novamente os maus pensamentos. “Vou comprar uma geringonça dessa!” Assim pensou, assim fez. Negociou o ponto e pegou um bom dinheiro. Banhou-se. Cortou o cabelo. Tirou a barba. Vestiu roupa nova. Óculos escuros. Pagou à vista e aprendeu o manuseio. Agora, havia que ter paciência. Fazer tudo direitinho. Fazer os cálculos e aguardar o momento propício quando todos os elementos conjuminassem. Muitas simulações até, que calhou.

 

O cego saído ponto, à tardinha. Pouca gente na rua. Um automóvel imprudente aproxima-se da passadeira em alta velocidade. O cego avança confiante no sinal sonoro emitido junto ao poste ainda com o sinal vermelho. Ninguém viu.


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