Noite. Fora, ainda a chuva que teimou em cair
todo o dia. Na taverna, os homens, de assuntos esgotados, aguardavam por um
estio ou por outros pretextos para mais conversa que acompanhasse as já poucas
cervejas que ainda conseguiam beber. A atenção de todos voltou-se para a porta
quando o velho do realejo entrara com o grande estardalhaço de coisas mal
amarradas e ranger de molas produzido pela caixa do instrumento que o velho
empurrava. O velho acomodou o carrinho num canto onde não estorvasse e
dirigiu-se para o balcão catando as poucas moedas. O assunto chegara. A chuva
bem poderia demorar mais um pouco.
-
Mal dia, hoje, heim, velho?
-
Pagamos a sua bebida, mas você tem que nos entreter com uma história.
-
Pagam também a sopa? – pergunta o velho colocando, rapidamente, as moedas no
bolso.
-
Também! Mas tem que ser uma história das boas.
O velho aproxima-se da mesa.
-
E será que havia a possibilidade de se conseguir algum para eu comprar um eixo
novo e mandar arranjar o feixe de molas do carro do realejo?
-
Fazemos uma coleta. Mas tem uma condição: Tem que ser uma história verdadeira e
não dessas que você inventa para pegar as esmolas.
-
Inventa e ainda tem a lata de dizer que as viveu.
-
O velho é rodado!
-
Qual!? É um grande mentiroso, isto sim! Tem história até na China.
-
O que é que tem!? Eu mesmo já estive lá.
-
Na China dos Mandarins!? Aqui, ó! O lugar mais longe que ele vai com essa
geringonça dele é aqui nos nossos vizinhos da fronteira.
-
Esse pelo menos, pode ir e vir.
-
Mas tem a imaginação...
-
Nessa, vamos e vimos, todos.
-
Chega de conversa. O jogo está feito. Dê um descanso à imaginação e conta-nos
uma história verdadeira, acontecida.
-
A brincadeira está saindo cara. Uns copos, a sopa e o eixo das rodas.
-
E o feixe de molas. – completa o velho tomando posição no centro do salão – Uma
história verdadeira... – começa, fingindo procurar na memória, mas com a
certeza de que sabia qual iria contar.
-
Vou fiscalizar! Se lhe pegar na mentira, adeus dinheirinho.
-
Boa! Ficamos só pela bebida e a sopa que já está de bom tamanho para um dia
chuvoso.
-
Uma história acontecida. – retoma o velho – Mas, antes de começar, pergunto se
algum de vocês estaria disposto a, de uma forma ou de outra, sacrificar-se pela
sua terra.
A indignação foi geral. Todos se sentiram
ofendidos e, cada um por sua vez, exibiu as marcas de seus sacrifícios.
-
Vê estas cicatrizes? São lembranças das torturas por que passei.
-
Vê este nome aqui no bilhete de identidade? Este não sou eu.
-
Vê esta tarja preta? É por um filho que perdi.
-
Vê este passaporte? É falso. Senão, cá não estaria.
-
Vê a tristeza do companheiro ali ao canto? É por sua netinha que desapareceu
ainda há pouco e a essa hora pode estar nos calabouços da repressão.
-
Aqui, todos nós, incluindo o dono da taverna, dá a sua quota de sacrifício.
Cada um à sua medida.
-
Uma coisa é certa, mesmo à sua medida, cada um aqui, faz mais que ficar
contando histórias bobas de duendes e rainhas, aí pela praça.
O velho não retrucou. Sabia que a melhor
resposta estaria na história que, de antemão, tinha a certeza de que todos ali
gostariam de ouvir.
-
Era uma vez... – inicia o velho com os mesmos ares com que, já há muito tempo,
contava as histórias de fadas e de aventuras no exercício de sua sobrevivência.
– Era uma vez um rapazote que andava pelo mundo a desenhar as pessoas. De seus
pastéis, carvão, lápis e aquarelas surgiam retratos e caricaturas que eram
trocados por algumas coroas que lhe garantiam o dia-a-dia e a passagem para
outras paragens, já que não ficava muito tempo no mesmo sítio. Certo dia, ao
retratar uma rapariga, por ela se apaixonou e dela quis fazer um retrato
perfeito. Ela própria achou que estava bom o primeiro que ele havia feito, mas
ele não. Quase todos os dias encontravam-se para novas tentativas. Sou
testemunha de seu sofrimento na busca do detalhe que faltava para que a obra
lhe satisfizesse em pleno. Mostrava-me os esboços que a todos eu achava bom
mas, que fazer, se ele a via com outros olhos. Olhos de apaixonado. Trabalhava
dia e noite, o coitado. Por último, já recusava encomendas, só a trabalhar no
retrato da amada. Ora o queixo. Ora o nariz. A boca. Não queria seguir a
estrada sem antes dar por terminado o intento. E, estrada nessa altura, só se
fosse à boleia, pois a bolsa já se esvaziara. Ficar seria bom, por estar
próximo a sua apaixonada. Mas para ficar havia que tornar a trabalhar e, como
trabalhar se já não fazia nada de jeito? Terminar a obra, isto sim, e levá-la
em pensamento para onde fosse. Não se conseguiria dizer qual era maior: a ânsia
da perfeição que lhe tomara a alma ou a paixão que nutria pela rapariguinha.
Paixão essa que, apesar do nosso convívio, até a esse momento, não lhes poderia
dizer se era correspondida. Ainda há
poucos dias, dois homens procuraram-no com uma proposta estranha: Ele ganharia
um bom dinheiro mas teria que ausentar-se da cidade por uns tempos. Eram da
polícia política. Queriam que ele fizesse um retrato-falado devido ao
impedimento do desenhador oficial. A testemunha ia dando-lhe as indicações que
o lápis e a borracha iam transformando no rosto já tão seu conhecido. Não sabia
o que sentia ao ver o retrato da amada escapando-lhe no papel. Tentou alterar
as feições mas o olhar inquiridor de um agente provocou-lhe um tal frio na
espinha que o fez perceber que não havia saída. Terminou o desenho. E lá estava
o que tanto procurara. Os olhos. Melhor, o olhar. Uma nuance que lhe conferia
um misto de medo e de esperança. Quis chorar, mas controlou-se. Não podia pôr
tudo a perder. Aquele olhar de esperança assustada era de quem, à sua medida,
fizera algo. Ele ainda podia fazer a sua parte também. Fingiu satisfação pelo
trabalho concluído. Recebeu a paga. Agradeceu e pôs-se ao encontro da amada com
quem atravessou a fronteira rumo à liberdade. E se a história não fosse tão
recente, eu até diria... e viveram felizes para sempre!
O que ficou a fiscalizar a história ergue o
dedo como que a pedir a palavra ao silêncio de contentamento que invadiu a sala
ao fim da narrativa. “Muito bem! Agora vamos aos pontos nos is. Até certa
altura dá para acreditar. Mas, a partir de quando a polícia o levou... só se
vocês tivessem tido um encontro depois disso... e, além do mais, como você
poderia saber que eles atravessaram a fronteira, sãos e salvos?”
A incredulidade espalha-se junto com o ranger
do carrinho que o velho puxa para o centro da sala. Neste momento, todos tinham
aquela esperança temerosa no olhar. O velho abre uma portinhola. Retira toda a
tralha: cobertores, panelas, fogareiro... Indica o espaço vazio. “Aqui bem
cabem dois mancebos. Desde que bem apaixonados.” – E, ante a satisfação de
todos, conclui, com um sorriso maroto – “Cada um à sua medida!”
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