domingo, maio 19, 2024

O retrato perfeito



Noite. Fora, ainda a chuva que teimou em cair todo o dia. Na taverna, os homens, de assuntos esgotados, aguardavam por um estio ou por outros pretextos para mais conversa que acompanhasse as já poucas cervejas que ainda conseguiam beber. A atenção de todos voltou-se para a porta quando o velho do realejo entrara com o grande estardalhaço de coisas mal amarradas e ranger de molas produzido pela caixa do instrumento que o velho empurrava. O velho acomodou o carrinho num canto onde não estorvasse e dirigiu-se para o balcão catando as poucas moedas. O assunto chegara. A chuva bem poderia demorar mais um pouco.

- Mal dia, hoje, heim, velho?

- Pagamos a sua bebida, mas você tem que nos entreter com uma história.

- Pagam também a sopa? – pergunta o velho colocando, rapidamente, as moedas no bolso.

- Também! Mas tem que ser uma história das boas.

O velho aproxima-se da mesa.

- E será que havia a possibilidade de se conseguir algum para eu comprar um eixo novo e mandar arranjar o feixe de molas do carro do realejo?

- Fazemos uma coleta. Mas tem uma condição: Tem que ser uma história verdadeira e não dessas que você inventa para pegar as esmolas.

- Inventa e ainda tem a lata de dizer que as viveu.

- O velho é rodado!

- Qual!? É um grande mentiroso, isto sim! Tem história até na China.

- O que é que tem!? Eu mesmo já estive lá.

- Na China dos Mandarins!? Aqui, ó! O lugar mais longe que ele vai com essa geringonça dele é aqui nos nossos vizinhos da fronteira.

- Esse pelo menos, pode ir e vir.

- Mas tem a imaginação...

- Nessa, vamos e vimos, todos.

- Chega de conversa. O jogo está feito. Dê um descanso à imaginação e conta-nos uma história verdadeira, acontecida.

- A brincadeira está saindo cara. Uns copos, a sopa e o eixo das rodas.

- E o feixe de molas. – completa o velho tomando posição no centro do salão – Uma história verdadeira... – começa, fingindo procurar na memória, mas com a certeza de que sabia qual iria contar.

- Vou fiscalizar! Se lhe pegar na mentira, adeus dinheirinho.

- Boa! Ficamos só pela bebida e a sopa que já está de bom tamanho para um dia chuvoso.

- Uma história acontecida. – retoma o velho – Mas, antes de começar, pergunto se algum de vocês estaria disposto a, de uma forma ou de outra, sacrificar-se pela sua terra.

A indignação foi geral. Todos se sentiram ofendidos e, cada um por sua vez, exibiu as marcas de seus sacrifícios.

- Vê estas cicatrizes? São lembranças das torturas por que passei.

- Vê este nome aqui no bilhete de identidade? Este não sou eu.

- Vê esta tarja preta? É por um filho que perdi.

- Vê este passaporte? É falso. Senão, cá não estaria.

- Vê a tristeza do companheiro ali ao canto? É por sua netinha que desapareceu ainda há pouco e a essa hora pode estar nos calabouços da repressão.

- Aqui, todos nós, incluindo o dono da taverna, dá a sua quota de sacrifício. Cada um à sua medida.

- Uma coisa é certa, mesmo à sua medida, cada um aqui, faz mais que ficar contando histórias bobas de duendes e rainhas, aí pela praça.

O velho não retrucou. Sabia que a melhor resposta estaria na história que, de antemão, tinha a certeza de que todos ali gostariam de ouvir.

- Era uma vez... – inicia o velho com os mesmos ares com que, já há muito tempo, contava as histórias de fadas e de aventuras no exercício de sua sobrevivência. – Era uma vez um rapazote que andava pelo mundo a desenhar as pessoas. De seus pastéis, carvão, lápis e aquarelas surgiam retratos e caricaturas que eram trocados por algumas coroas que lhe garantiam o dia-a-dia e a passagem para outras paragens, já que não ficava muito tempo no mesmo sítio. Certo dia, ao retratar uma rapariga, por ela se apaixonou e dela quis fazer um retrato perfeito. Ela própria achou que estava bom o primeiro que ele havia feito, mas ele não. Quase todos os dias encontravam-se para novas tentativas. Sou testemunha de seu sofrimento na busca do detalhe que faltava para que a obra lhe satisfizesse em pleno. Mostrava-me os esboços que a todos eu achava bom mas, que fazer, se ele a via com outros olhos. Olhos de apaixonado. Trabalhava dia e noite, o coitado. Por último, já recusava encomendas, só a trabalhar no retrato da amada. Ora o queixo. Ora o nariz. A boca. Não queria seguir a estrada sem antes dar por terminado o intento. E, estrada nessa altura, só se fosse à boleia, pois a bolsa já se esvaziara. Ficar seria bom, por estar próximo a sua apaixonada. Mas para ficar havia que tornar a trabalhar e, como trabalhar se já não fazia nada de jeito? Terminar a obra, isto sim, e levá-la em pensamento para onde fosse. Não se conseguiria dizer qual era maior: a ânsia da perfeição que lhe tomara a alma ou a paixão que nutria pela rapariguinha. Paixão essa que, apesar do nosso convívio, até a esse momento, não lhes poderia dizer se era correspondida.  Ainda há poucos dias, dois homens procuraram-no com uma proposta estranha: Ele ganharia um bom dinheiro mas teria que ausentar-se da cidade por uns tempos. Eram da polícia política. Queriam que ele fizesse um retrato-falado devido ao impedimento do desenhador oficial. A testemunha ia dando-lhe as indicações que o lápis e a borracha iam transformando no rosto já tão seu conhecido. Não sabia o que sentia ao ver o retrato da amada escapando-lhe no papel. Tentou alterar as feições mas o olhar inquiridor de um agente provocou-lhe um tal frio na espinha que o fez perceber que não havia saída. Terminou o desenho. E lá estava o que tanto procurara. Os olhos. Melhor, o olhar. Uma nuance que lhe conferia um misto de medo e de esperança. Quis chorar, mas controlou-se. Não podia pôr tudo a perder. Aquele olhar de esperança assustada era de quem, à sua medida, fizera algo. Ele ainda podia fazer a sua parte também. Fingiu satisfação pelo trabalho concluído. Recebeu a paga. Agradeceu e pôs-se ao encontro da amada com quem atravessou a fronteira rumo à liberdade. E se a história não fosse tão recente, eu até diria... e viveram felizes para sempre!

 

O que ficou a fiscalizar a história ergue o dedo como que a pedir a palavra ao silêncio de contentamento que invadiu a sala ao fim da narrativa. “Muito bem! Agora vamos aos pontos nos is. Até certa altura dá para acreditar. Mas, a partir de quando a polícia o levou... só se vocês tivessem tido um encontro depois disso... e, além do mais, como você poderia saber que eles atravessaram a fronteira, sãos e salvos?”

 

A incredulidade espalha-se junto com o ranger do carrinho que o velho puxa para o centro da sala. Neste momento, todos tinham aquela esperança temerosa no olhar. O velho abre uma portinhola. Retira toda a tralha: cobertores, panelas, fogareiro... Indica o espaço vazio. “Aqui bem cabem dois mancebos. Desde que bem apaixonados.” – E, ante a satisfação de todos, conclui, com um sorriso maroto – “Cada um à sua medida!”




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