Era uma
vez, num futuro não muito longínquo, uma Corporação que cresceu em torno de um
grande mercado de valores e veio a registar uma das maiores rendas per capita
do globo corporativo. Apesar de nela morarem algumas das pessoas mais
creditadas do Sistema Distribuidor de Créditos, seu mais conhecido
representante era um atleta que, nos últimos Jogos, bateu um recorde acumulado
de muitos anos e, de momento, todas as suas medalhas electrónicas de crédito
instantâneo estavam sendo contestadas pelo comitê intercorporativo, em
audiência interna.
A
acusação: ter negligenciado seus compromissos profissionais não tomando a droga
prescrita pelo laboratório, seu patrocinador.
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Pela manhã, deixei a droga diluída num copo d’água, na mesa de cabeceira –
explica o Atleta – Tomei-a quando voltei do pequeno-almoço.
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E como explica que em todas as análises não foi encontrado nenhum vestígio e o
mesmo na contra-análise?
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Tenho a minha consciência tranquila. Bebi a água. Não dei por nada porque, como
todos sabem, essa substância é insípida e... Bem, a única explicação que posso
dar é que a camareira do hotel, ao fazer a arrumação, tenha derramado o copo e
colocado outro com água pura.
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E porque ela faria uma coisa destas?
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Por acidente. Sei lá eu!
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Ou por sabotagem. Vamos averiguar. Ela pode ser uma agente de um outro
laboratório. – o presidente da mesa está nervoso – O facto é que estamos num
quiproquó daqueles. Não podemos legitimar a vitória, pois não temos como
satisfazer as exigências do patrocinador, que é a propaganda do seu produto.
Por outro lado, não podemos tirar-lhe as medalhas alegando que você não tomou a
droga. O patrocinador ficaria desmoralizado. Afinal, tantos créditos gastos
e...
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Podemos anular as vitórias por outro motivo. – tranquiliza um dos membros do
comitê – Tenho conhecimento de que durante os preparativos dos Jogos, o atleta
cometeu uma falta imperdoável para um profissional de altíssima competição. Fez
uma exibição desonerada. Não recebeu um crédito sequer. Não foi assim, meu
jovem?
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Bem! Foi na minha corporação natal. Recusei os créditos que os organizadores
ofereciam, mas não corri de graça. Tive a minha paga.
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Como assim?
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Essa minha terra é uma corporação daquelas criadas por uma grande superfície
comercial, mas que tem uma área em estufa para experiências agrárias anciãs
onde cultivam uma planta com o nome de trigo e com ela fazem uns pãezinhos que
são uma das atracções turísticas da região, dos quais eu gosto muito, mas são
muito caros. Portanto, eu troquei os créditos de minha apresentação pelo
equivalente em pães.
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Senhores! – o presidente levanta-se com ares de quem está prestes a pedir
demissão do cargo – Os senhores não percebem a gravidade da situação. Temos
motivos para castigar o atleta, mas, o que dizer à opinião pública, aos
consumidores? Todos viram os feitos do atleta e quererão saber que droga ele
tomou, como ela se processou no metabolismo na altura da prova, enfim...
Como
ficou resolvida a questão, sinceramente, não sei. O que sei é que muito tempo
depois restou a Lenda do Atleta de Pés Alados, que dizia assim: Era uma vez, há
muitos e muitos anos, um atleta que parecia ter asas nos pés e que se
alimentava só de pão e água...
Lisboa, 2000
(Em lembrança de Jim
Thorpe e de outros desportistas injustiçados)