domingo, setembro 29, 2024

Obrigado, Saramago

 

Poderia estar agradecendo a Érico Veríssimo, Miguel Torga, Augustina Bessa Luís, Craveirinha, Mia Couto, Jorge Amado, Vergílio Ferreira... a tantos outros mas, calhou a Saramago.

Desde pequeno que, na escola, nas rodas de amigos ou mesmo por desconhecidos, sou gozado ou “corrigido” por dizer Nobel bem aportuguesadamente como manda a regra mneumónica do Rouxinol, que diz que para ser paroxítona terminada numa dessas letras, tem que levar acento. Porém, a maioria diz Nóbel, justificando essa mania que parece que só os brasileiros e os portugueses têm de querer dizer os nomes próprios como são falados no original, mesmo os nomes cujos fonemas não tem registo na língua portuguesa e nos obriga a muita careta e arranhar da garganta. E nem adianta alegar que o Mário Quintana garantiu que em sueco, Nobel é Nobel mesmo. Como as notícias chegam-nos através de agências de língua inglesa que não tem a mesma preocupação, reproduz-se segundo esta.

Até que... finalmente chegou a vez da lusofonia. Também tenho um! O prémio é meu, falo do jeito que quiser:

Nobel, Nobele, Nobé, Nóbi, Nober...


domingo, setembro 22, 2024

O atleta

 

Era uma vez, num futuro não muito longínquo, uma Corporação que cresceu em torno de um grande mercado de valores e veio a registar uma das maiores rendas per capita do globo corporativo. Apesar de nela morarem algumas das pessoas mais creditadas do Sistema Distribuidor de Créditos, seu mais conhecido representante era um atleta que, nos últimos Jogos, bateu um recorde acumulado de muitos anos e, de momento, todas as suas medalhas electrónicas de crédito instantâneo estavam sendo contestadas pelo comitê intercorporativo, em audiência interna.

A acusação: ter negligenciado seus compromissos profissionais não tomando a droga prescrita pelo laboratório, seu patrocinador.

- Pela manhã, deixei a droga diluída num copo d’água, na mesa de cabeceira – explica o Atleta – Tomei-a quando voltei do pequeno-almoço.

- E como explica que em todas as análises não foi encontrado nenhum vestígio e o mesmo na contra-análise?

- Tenho a minha consciência tranquila. Bebi a água. Não dei por nada porque, como todos sabem, essa substância é insípida e... Bem, a única explicação que posso dar é que a camareira do hotel, ao fazer a arrumação, tenha derramado o copo e colocado outro com água pura.

- E porque ela faria uma coisa destas?

- Por acidente. Sei lá eu!

- Ou por sabotagem. Vamos averiguar. Ela pode ser uma agente de um outro laboratório. – o presidente da mesa está nervoso – O facto é que estamos num quiproquó daqueles. Não podemos legitimar a vitória, pois não temos como satisfazer as exigências do patrocinador, que é a propaganda do seu produto. Por outro lado, não podemos tirar-lhe as medalhas alegando que você não tomou a droga. O patrocinador ficaria desmoralizado. Afinal, tantos créditos gastos e...

- Podemos anular as vitórias por outro motivo. – tranquiliza um dos membros do comitê – Tenho conhecimento de que durante os preparativos dos Jogos, o atleta cometeu uma falta imperdoável para um profissional de altíssima competição. Fez uma exibição desonerada. Não recebeu um crédito sequer. Não foi assim, meu jovem?

- Bem! Foi na minha corporação natal. Recusei os créditos que os organizadores ofereciam, mas não corri de graça. Tive a minha paga.

- Como assim?

- Essa minha terra é uma corporação daquelas criadas por uma grande superfície comercial, mas que tem uma área em estufa para experiências agrárias anciãs onde cultivam uma planta com o nome de trigo e com ela fazem uns pãezinhos que são uma das atracções turísticas da região, dos quais eu gosto muito, mas são muito caros. Portanto, eu troquei os créditos de minha apresentação pelo equivalente em pães.

- Senhores! – o presidente levanta-se com ares de quem está prestes a pedir demissão do cargo – Os senhores não percebem a gravidade da situação. Temos motivos para castigar o atleta, mas, o que dizer à opinião pública, aos consumidores? Todos viram os feitos do atleta e quererão saber que droga ele tomou, como ela se processou no metabolismo na altura da prova, enfim...

 

Como ficou resolvida a questão, sinceramente, não sei. O que sei é que muito tempo depois restou a Lenda do Atleta de Pés Alados, que dizia assim: Era uma vez, há muitos e muitos anos, um atleta que parecia ter asas nos pés e que se alimentava só de pão e água...

 

Lisboa, 2000

(Em lembrança de Jim Thorpe e de outros desportistas injustiçados)


domingo, setembro 15, 2024

O incorruptível almeida

Mais do que as taxas, chateiam-nos a espera e a burocracia dos serviços públicos, o que nos leva, às vezes, a lançar mão de alguns subterfúgios. Foi o que aconteceu comigo a quando das obras na nova casa velha de Alfama e que me deixou duas noites sem dormir e a pensar que teria sido bem melhor ter arcado com todas as chatices da legalidade.

O encarregado da reforma juntou o entulho em sacos plásticos, empilhou-os à porta e disse-me que desse uma gorjeta para o lixeiro que, com certeza, levaria junto com a recolha diária. Relutei e até pensei que seria má ideia mas, ao ver o gari, ao longe, lembrei-me de uma vez que ele, ao entrar no Tejo bar para pegar o saco de lixo e um cliente ofereceu-lhe uma bebida e ele recusou dizendo que não bebia e, conversa vai, conversa vem, o cliente ao saber dos apuros que ele passava com a doença da mulher, deu-lhe uma boa quantia que foi agradecida em típica cena de noites ébrias entre abraços e olhos mareados. Não briguei mais com a consciência e passei da intenção ao acto. Discretei a nota e fiz o pedido.

- Só lixo doméstico! – taxou com um abano de cabeça e com uma cara que por si só já me deixaria uma noite inteira de insônia que duplicou quando, ao  aperceber-me que da outra vez, fora uma prenda,um agrado, uma ajuda... desta, o nome era outro... apresentei minhas desculpas que foram recusadas juntamente com o aperto de mão.

Durma-se com uma destas!


 

segunda-feira, setembro 09, 2024

História e histórias

 

História e histórias

 

O meu amigo Horácio bem poderia ser chamado Homero ou até mesmo Heródoto porque, vai gostar de história assim, na China, ou melhor, na Grécia Antiga. Um dos temas que mais lhe atrai a atenção é a origem dos nomes das terras. Duas histórias a esse respeito vou contar mas, alerto ao ouvinte ou leitor que, a história contada pelo Horácio é como a dos outros dois e a de outros historiadores, é cheia de histórias.

A primeira, conta que uma nave portuguesa ao passar pelas Caraíbas, deixou em uma das ilhas quatro tripulantes que haviam contraído escorbuto. Como a ilha era farta de frutos, os quatro escaparam à morte. A nave, ao passar novamente pela ilha e diante do facto, baptizou a ilha de Curação. Os espanhóis, na senda dos portugueses, tiraram-lhe o til e os holandeses desnasalaram de vez o vocábulo, dando no que é hoje, Curaçao.

A outra deu-se na costa de África. Conta o Horácio que um outro navio português ancorou num sítio muito a ermo, a procura de água. A tripulação encontrou um ermitão que, apesar de viver isolado e de não falar nada, era muito solícito e amigável. Mostrou aos portugueses as melhores fontes e ajudou a carregar víveres para a embarcação. Um homem preto como a noite, muito grande e forte que foi logo baptizado de Zé e, sempre que os portugueses passavam por perto do tal sítio, diziam: “Vamos lá no Zé Negão!” Os ingleses e franceses, na senda dos portugueses e espanhóis, não tinham o jeito e ficou, Senegal.


segunda-feira, setembro 02, 2024

Senhor Arlindo, o engraxador

 


O  senhor Arlindo trabalha todos os dias. Quando o restaurante A Mourisca, a esquina da Fontes Pereira de Melo com a Andrade Corvo, está fechado, ele muda o ponto para o Forno e Fogão, restaurante mais próximo. Pela  manhã, bem cedo, lá está ele com seu fato-macaco azul escuro,impecavelmente limpo e engomado, à espera dos primeiros clientes. Bancários, empregados do comércio, vendedores, escriturários e pessoas a procura de emprego. Estava eu a observar sua cabeça branca ao rés das mesas que alternava agilmente quando,como que por pressentimento, seus olhos se erguem para a porta de entrada onde um homem de meia idade, elegantemente vestido, com ar tranquilo de executivo bem sucedido, que contrastava com a maioria dos que ali estavam, parado, a olhar carinhosamente para o senhor Arlindo que ao vê-lo, esgueira-se por entre os clientes. Abraçam-se carinhosamente, trocam beijos e algumas palavras e despedem-se com mais beijos. O empregado de mesa,ao perceber que eu os observava com curiosidade, diz-me e tom baixo:

- É seu filho.

- E fazia muito tempo que eles não se viam? – perguntei como que a perceber a razão de tanto carinho.

- Não. Isso é todo dia.