segunda-feira, agosto 26, 2024

O velho curandeiro


 

A paisagem seria totalmente desértica não fosse por três habitantes num raio de cerca de cem quilômetros e o escasso movimento da rodovia e ferrovia que cortavam a paisagem em paralelas. Um habitante cuidava do posto de serviço da rodovia. Os outros dois habitavam nas montanhas empedernidas que separavam as duas estradas.

 

Um caminhão deixa no posto de serviço o passageiro que ia tentar a vida na cidade, mas as dores o impediam de seguir viagem.

 

- É uma infecção que tenho há tempos, entre os dedos dos pés. – explica ao dono do posto que lhe ajuda a tirar as botas. – Já estava mal e com o calor da cabine do caminhão, piorou. Está insuportável.

- Já tive isso. – diz o outro, olhando as feridas. – Há quem chame pé-de-atleta.

- Mas, dizem que não tem cura.

- Sei. E sofri imenso com isso até que vim para Ca e conheci o velho que mora nas montanhas. É um curandeiro. Ele cultiva uma planta que nunca vi parecida. É rasteira, mas tem as folhas largas, arredondadas.

- É difícil de acreditar. Já fui em tantos médicos.

- Sei, sei. E todos passaram um monte de pomadas e banhos  e, nada. Pois, quando puder andar até lá, verá. Com uma só consulta... E simples. O velho veste umas roupas esquisitas, acende um cachimbo fedorento e, com um chocalho, começa a dançar acompanhado por um tambor que seu neto toca do alto de uma pedra. Você só tem que descalçar e pisar nas folhas NE mesmo lugar onde o velho pisou. Ele tira o pé e você, põe. É engraçado que você acaba por dançar também. Dá duas ou três voltas no canteiro e, pronto.

- É mesmo difícil de acreditar. Quer dizer que com dois passinhos de dança...

- Passos de mágica.

- E quantas vezes deixei de dançar por causa disso. E, agora, com uma dança...

- Claro que é só encenação do velho. Uma maneira de valorizar o trabalho dele. O que cura e a planta. Um ácido armazenado nos bulbos que tem nas folhas é injectado na pele ao pisar.

- E essa encenação é valorizada em quanto?

- O velho não leva nada. Claro que você vai ficar eternamente agradecido e de onde estiver pode mandar alguma coisa para ele. Comida, um bom vinho, coisa assim. As pessoas que ele já curou mandam sempre uma lembrancinha. Quando o comboio para no apeadeiro, é certo. Tem lá uma encomenda.

- Custa a acreditar.

- Pois, quando estiver melhor, vamos á. – fala, enquanto lava os pés do forasteiro com um bálsamo. – Vai ser difícil convencer o velho, porque ele não quem mais trabalhar. Anda desgostoso. Com umas ideias esquisitas. Mas se for eu a pedir, é capaz dele atender.

- É muito velho?

- Nem por isso. Mas inventou que não quer mais viver. Diz que perdeu a capacidade de riri. E a vida sem o riso não tem graça. Maluquices... mas entendo o velho. Perdeu tudo... e vai ficar só, pois o neto vai para a cidade. Sei como é. Passei por isso. Perdi emprego, família...

- Bebida?

- Jogo.Era uma doença que só tinha um jeito. Ficar longe das cartas. Assim fiz. Enfiei-me neste fim-de-mundo. Mas, tenho um objectivo. Minha filha está para entrar para a universidade e consegui juntar um dinheiro que dá para pagar seus estudos. É o mínimo que posso fazer para remediar tanta perda. Também não rio muito, mas morrer, só depois de ver minha filha formada. Fique aqui comigo. É bom que você me ajuda a ajeitar a casa. Há muito que precisa de uma reforma. Tapar uns buracos, coisa pouca. Quando melhorar, vamos lá ter com o velho.

O forasteiro ficou. A história do dinheiro para a filha não lhe saía da cabeça. Observou. O dinheiro era guardado no cofre atrás do frigorífico. Uma vez por semana, o dono ia à cidade fazer compras. Saía cedo e só voltava à tardinha. Seria fácil. Já conseguia calçar as botas e conhecia o caminho até ao apeadeiro.  E, a meio do caminho, o velho. A cura dos dois males que o afligiam: o físico e o financeiro.

 

O alforje estava pesado, pois muito do dinheiro era em moedas. A escalada era dorida e tinha de ser rápida.

- Onde está teu avô? – pergunta ao jovem sentado num penhasco.

- Está acolá.- e completa sem tirar os olhos do ponto onde as duas estradas pareciam juntar-se no horizonte. – Mas não adianta ir lá por que ele já não atende ninguém.

Acorda o velho que dormitava à sombra de uma pedra, junto ao canteiro das plantas mágicas que era a única coisa verde na região.

- ... e depressa que tenho que apanhar o comboio. – diante da recusa, aponta o revólver. – Senão... mato-te, velho!

- É um favor que me fazes. – responde sem mover um dedo. – Vocês levaram minhas terras, minha família, meu riso, e vão levar meu neto. Essa bala é bem vinda.

- Vá pro Diabo, velho tonto! – tira as botas e as meias e marcha sobre as plantas. – Ah! É para dançar,não é ,velho? E como é? É assim? – dança. – Assim, é Rock and  Roll. Ou será um Jazz. Assim. Que tal o Sapateado, velho? Ou uma Valsa! Trá-lá-lá-lá... Não. Vocês dançam é assim. Tum tum tum. Adeus, velho maluco. – vai-se embora a dançar, saltando sobre as pedras.

 

Ao chegar ao posto, logo deu pela falta do revólver na gaveta do balcão. Nem perdeu tempo em verificar o cofre. Apanhou a espingarda e uma caixa de munição e, com a imagem da filha na lembrança, avança para o caminho . Começa a descer as escarpas quando escuta os apelos do rapazote.

- Acuda o avô. Ele está a passar mal. Não consegue respirar. Ao longe vislumbrava o vulto do fugitivo. Não hesitou. A gratidão era eterna. Ergue os braços do velho que aos poucos retoma o ritmo da respiração entrecortada com risadas desconexas que lhe enchiam os olhos d’água e dificultava a fala.

- Então, velho, ias morrendo a rir? – vai saindo – Quando eu voltar, conta-me como foi isso.

- Não há pressa. O bobo do teu hóspede não irá longe. – diz o velho explodindo numa gargalhada. – Ah, que eu morro. Só de pensar como estão os pés dele agora...eu não aguento... imagino a dança que ele faz agora...

- Calma. Respira fundo. Conta lá, vai.

- Eu estava a dormir ali quando o teu hóspede apareceu... – e conclui entre riso. - ... acontece que as folhinhas têm de ser pisadas antes para ficar só a dose certa senão, o remédio vira veneno. Tudo tem de ser na dose certa, não é mesmo?

- Sei.Mas vou atrás do meu dinheiro. E, cuidado. Dose certa. Não vá ter outro acesso. E eu, vou dar-lhe uma dose certa de balas.

 

Mesmo que não conhecesse o caminho seria fácil seguir a trilha marcada pelos apetrechos que o outro deixava cair na trôpega caminhada. Primeiro o revólver. Notas. Moedas e outros objectos. Um monte de moedas aqui, outro mais a frente. E o próprio homem amontoado com o alforje, mochila e botas. Costas no chão. Pés para o alto. Gemidos. A dose certa de sofrimento.

 

Sem toda a parafernália, poderia arrastar-se sobre as pedras até o apeadeiro.

Não valia o preço de uma bala.

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