domingo, outubro 28, 2018

Mudei meu não-voto


Na minha ingenuidade revolucionária sempre achei quase impossível fazer-se uma revolução no Brasil, tão religioso, tão cristão. Admirava os povos que conseguiram fazê-la.  Zapata, Sandino, Castro, Louverture... Imaginava eu, como eles agiam para angariar simpatia para a luta que invariavelmente derrama sangue de irmãos?  Com a expansão do cristianismo através da proliferação de igrejas evangélicas neopetencostais, nunca imaginei que se pudesse convencer os camponeses e os operários a colaborar com quem empunhasse uma arma para lutar por uma mudança. Que ingenuidade! Uma nova Cruzada se avizinha.

Durante a Ditadura Militar fizemos de tudo pelo direito de escolher os nossos dirigentes.  O direito de voto foi reconquistado, mas em trinta anos percebemos que só isso não bastava para as mudanças que se fazem necessárias para uma sociedade mais igualitária. Portanto, eu optei por não votar, nem incentivava ninguém a votar. Mas também não estava mais lutando. Era partidário do não-voto, do eles-não e só. Para quê? Não vai mudar nada! Aprendi que só a Revolução para uma Nova Democracia poderá ser o caminho para um mundo melhor e acredito que ela esteja em curso.  Porém, depois do discurso telefônico para a Paulista, comecei a titubear. Nesses trinta anos não tivemos democracia, mas não tivemos o medo que tínhamos nos vinte e um de ditadura militar.

Bolas, sabemos que o Socialismo, inexoravelmente, será alcançado. Se não houver um cataclismo ou uma guerra que acabe de vez com esse globo, a humanidade chegará ao ponto de viver em comunhão com a natureza. Portanto, não será o meu voto que atrapalhará esse avanço que, acredito, é científico. Uma Nova Democracia surgirá, mas meu lombo pode levar amanhã mesmo. Prefiro arriscar a poder passar pelo menos mais quatro anos sem o medo do relho. Vou votar no Haddad!

Disse arriscar, porque dizem que se o PT ganhar, o fascismo (último guardião do Capitalismo) que está metastasiado na sociedade, obrigará as Forças Armadas a um Golpe de Estado. Se assim for, é preferível ter uma ditadura imposta que a vergonha de se eleger uma. A vergonha de ser nós próprios a escolhermos um governo em que o Homem não será nada mais que o braço armado de um Deus que ditará quem são os Seus e quem são os que irão para a “ponta da praia”.

segunda-feira, outubro 15, 2018

Era que não era de Aquarius


Corria a década de 1970. Meio aos anos duros da Ditadura Militar surgiu o Projeto Aquarius, idealizado pelo jornalista Roberto Marinho e pelo maestro Isaac Karabtchevsky que, à frente da Orquestra Sinfônica Brasileira, procurava popularizar a boa música. Em Brasília, a apresentação estava programada para o Ginásio Coberto que, sabia-se de antemão iria lotar, não só por ser com entrada franca e pela divulgação maciça dos meios de comunicação, mas pela carência de divertimento do povo das cidades satélites ao Plano Piloto da Capital, que tanto quanto os bairros de lata que a abastecia de mão de obra, também sofria da carência dos grandes espetáculos que se concentravam no eixo Rio-São Paulo.

Fui cedo para pegar lugar. Circundando o Ginásio, vários canhões de 105 mm apontavam suas bocas para a grande multidão que descia dos coletivos que vinham da Ceilândia, Taguatinga, Gama, Núcleo Bandeirante, Guará...  Hum...

Consegui um folheto com a relação das músicas e lá constava a Abertura 1812, de Tchaikovsky, mas andava tão escaldado que não percebi de vez que os tais canhões fariam parte da execução da Abertura, que o próprio compositor não conseguiu executá-la como imaginara. Só me atinei quando a arquibancada tremia sob os ribombos e tive que ajudar a procurar fazer com que o povo prestasse atenção aos alto-falantes que tentavam evitar uma tragédia.

Hoje, de qualquer forma, prestem bem atenção aos canhões. Podem não fazer parte do espetáculo.

(A ilustração, não sei de quem é a autoria.)

sexta-feira, maio 04, 2018

A Máquina de Lágrimas de Isabelle Huppert ou As Agruras de um Figurante


Fui convidado por telefone para fazer figuração em um filme de produção estrangeira e percebi mal o recado. Ao pensar que se tratasse de um filme alemão a falar sobre o Nazismo, aceitei sem pestanejar. Seria algo histórico (ainda não tinham feito o “A Queda”) e eu disse que até trabalharia de graça. Ao que disseram que não carecia e que o  cachet seria maior que o normal por se tratar de figuração especial.  A produção precisava de muita gente. Pelo menos cento e cinquenta pessoas dispostas a ficar em pelotas, em pleno Inverno lisboeta.  

Na verdade, não era um filme alemão, era francês, Deux. O diretor Werner Schroeder é que é alemão. Não era sobre o Nazismo. Apenas uma cena onírica interpretada por Isabelle Huppert junto aos mortos de um campo de concentração nazista. De qualquer forma o convite já havia sido aceite e os vinte e cinco euritos davam bem jeito.  E seria só para tirar a roupa, não para falar alemão.

No ginásio desportivo onde seria rodada a cena havia aquecedores por todo lado, ainda assim procurei um sítio bem cômodo para a filmagem que seria demorada, o que, para papel de morto é um grande inconveniente. Deitei-me sobre três mocinhas adolescentes rechonchudas. Tão bem acomodado que daria até para tirar um cochilo para descontar a noite toda passada no Tejo bar. Porém o diretor de cena ao reparar nas minhas costelas resolveu colocar-me mais à frente da cena, onde estavam os mais cadavéricos. Mudou tudo. Das almofadas naturais fui para o chão de cimento. Em vez de cochas e barriguinhas, a ponta de uma pila a fazer-me cócegas no ouvido. E só podia mover-me após o “corta” tantas vezes dito. Por um pouco de sorte, o referido membro era de um conhecido francesinho, cliente do Tejo bar e quem havia dado o meu contato para a assistência da produção. Não me lembro do seu nome, mas o grau de intimidade adquirido nas noitadas de Alfama me permitiam retirar manualmente o enxerido da orelha, sem atrapalhar os “takes”.  

Como a sorte também nunca vem sozinha, pude ver a Isabelle Huppert a partir de uma posição privilegiada. Posição tal que se rapaz ainda fosse me gabaria todo, mas já sou quase maduro para não me abalar muito com os mistérios do que será que se vislumbra no escuro fundo de uma saia. Grande sorte a de poder ver a atriz francesa derramar lágrimas a cada vez que seu nome era gritado pelo realizador como em um reflexo pavloviano nas incontáveis repetições que foram feitas. Era assim: Atenção. Câmara. Isabelle! E ela abria a torneira automaticamente. Nunca vi nada igual!

Poderia estar me sentindo o máximo. Um ator abençoado pelas lágrimas de uma deusa da Sétima Arte a quem respingou algumas gotículas do pranto, ainda que falso, em seu rosto de morto com olhos arregalados que suscitou um agradecimento de parte do diretor de cena.  Mas não. Mesmo velho, ainda fico bobo a pensar no que seria aquilo que meus olhos viram quando a atriz passou por cima de mim derramando as lágrimas que nem foram bem aproveitadas na montagem final. Coisas do cinema.



quarta-feira, maio 02, 2018

Zé Brasileiro Português de Braga


Quando cheguei a Portugal, em 1990, já fazia uns dez anos que a música Zé Brasileiro Português de Braga tinha feito um enorme sucesso e ainda repercutia. O jargão me acompanhou por muito tempo. Ao me apresentar, alguém mandava logo com o “Brasileiro de Braga?”. É daquelas músicas chicletes que se você a ouve pela manhã, passa o dia com ela no ouvido. Um refrão que não há quem não assobie. Para balançar o capacete então nem se fala! Passei vinte anos em Portugal e até fui a Braga, mas não cheguei a perceber isto do ser português de Braga. Imaginava que talvez por ser desta cidade grande parte dos que emigravam para o Brasil. Ou poderia se tratar de alguma figura folclórica regional. Ninguém me respondia direito. A maioria dizia que era só por causa de uma música que a Alexandra cantou num Festival da Canção e que foi tão tocada que chegou a saturar, como é comum acontecer com os “hits”.

Quatro anos depois de estar de volta ao Brasil,  aos amigos da terrinha, recebemos o convite do Rodrigues Vaz para irmos a Constância conhecer o Zé Brasileiro Português de Braga. Achei que o amigo estava com reinação. Não estava. Fomos ao palacete de três andares, todos três muito bem ocupados por gatos, chuchus amarelos, arte para todo lado, relíquias, desenhos de Burle Marx... e um museu com a vida e obra do grande poeta e ator Vasco de Lima Couto, de quem nosso anfitrião nos presenteou com um envelope cheio de poesia, como tudo naquele casarão abençoado.  No envelope, o poema que serviu de letra para a canção que António Sala musicou como prenda de anos para o José Ramoa, o próprio Zé Brasileiro Português de Braga, ali, na nossa frente, todo saudade e simpatia a exaltar o amigo poeta nas tantas coisas boas que nos legou.

Identifiquei-me de cara com o poema por também ter meu tempo adolescente de perdido nas avenidas de Copacabana.

Eliana deu-me a ideia de colocá-lo em uma música que permitisse mais facilmente perceber-se a profundidade daquele mar. Para tal, pensei logo no fado, ao qual o próprio silêncio obriga. Mas havia que ter um sotaque brasílico consoante a história da personagem. A isto também se atinou o grupo Azeituna, que a executa em ritmo de samba, quase que invariavelmente, acompanhada de palmas e exuberante alegria. Bem, como o Fado e o Samba são irmãos, fiz uma melodia sem muita firula para cantora Roberta (Romi Kari Oca), que tão bem se adapta aos dois modos, combiná-los. Porém, o ideal é deixar o poema caminhar por si só, ainda que devagar... o céu é redondo.




quinta-feira, abril 05, 2018

Ênviro

Estou sugerindo aos dicionaristas a inclusão do tópico  'ênviro' ou 'envirão' para designar tudo aquilo que nos cerca, em substituição ao redundante 'meio ambiente'. Ênviro é latina e se não fosse por línguas estrangeiras, inclusive a inglesa, já teria caído em desuso. 

Quando criança levei reguada da professora por dizer uma redundância muito comum, 'subir pra cima'. Hoje temos um ministério com uma redundância sem tamanho.
O povo tem toda a liberdade para falar à sua maneira, correta ou não, afinal, é a sua mobilidade linguística que dita as palavras. Cria, transforma, olvida, resgata... O povo pode, O Estado, não!

quinta-feira, janeiro 18, 2018

Meu envolvimento com o Cordel

Numa de minhas viagens pela BR 364, no tempo dela em barro, quando para se chegar mais rápido, ia-se trocando de carona de atoleiro em atoleiro, peguei uma carona com o senhor Zezinho e ia pensando que uma boa maneira de retribuir a gentileza seria dedicar-lhe uns versos, para além de bater os pneus, verificar o óleo, limpar o para-brisa ou servir de companhia, combatendo a solidão da estrada e a tortura do sono. O tema para os versos seria as diferentes coisas e costumes  das terras por onde íamos. Começou assim, o que chamei de Do Norte e do Sul, meu primeiro cordel:

“Seu” Zezinho me levou
Na boleia do “alfão”
Lhe dedico esses versos
Com muita admiração
Pois é um grande motorista
Esteio desta Nação

De Norte a Sul viajando
Comecei a reparar
Que as coisas mudam de nome
Dependendo do lugar
Às vezes, mudam as coisas
E, algumas, vou comentar

Ia por aí... até falei da jabuticaba, minha tão bem conhecida, me vingando dos cupuaçus e graviolas que provocavam risos com o meu estranhamento e que hoje todo mundo conhece com a globalização.
Quando voltei da viagem, procurei os amigos gráficos da UFAC e imprimimos uns cem exemplares da brincadeira. Outras ideias vieram e rapidamente saiam para as ruas e bares vendidas de mão em mão. E olha, que durante pelo menos um ano e meio, comi graças aos livretos de cordel. Até dizia que, no Brasil só eu e o Jorge Amado vivia de literatura, guardando as devidas proporções. Ele, o outro Jorge, comia bem.
Tudo podia servir de tema. Até uma briga conjugal terminou em versos onde entrei com sextilhas e a mulher com quadras. Foi o deleite do público que pagava para saber mais detalhes do que o que a imprensa só noticiava superficialmente.
A política era um bom tema. Para ludibriar a censura com o Transformações, juntei no mesmo livreto o Sou Homem de Xapuri, Cabra Macho Pra Lascar, que dissertava comicamente sobre o fato de Xapuri ser a cidade do Acre eleita para as gozações sobre as opções sexuais dos homens nela nascidos.
Apertos mesmo, só os passei quando editei o A Guerrilha do Araguaia, de Raimundo Nonato da Rocha, poeta de Brasiléia, de quem já havia editado o Espártaco. Esses dois tive que os fazer praticamente sozinho e a distribuição era feita muito na calada até que sofri uma ameaça quando divulguei o A Guerrilha... no I Encontro de Escritores de Rondônia. Disseram que não poderia vendê-los ou... um tapa de leve na cara foi um bom pretexto para desistir da venda durante o encontro e entregar todos os exemplares para o pessoal da resistência camponesa que os distribuiu gratuitamente em Guajará-Mirim. Saiu melhor que a encomenda.
Durante um Congresso Nacional de Professores, em Vitória, Espírito Santo, a verba que o Estado destinara para a participação acreana emperrou-se na burocracia. Como muitos dos participantes tinha levado castanha que serviriam para troca de mimos com participantes de outras regiões do país, resolveu-se colocar à venda numa banca à porta do auditório. Rapidamente, saíram alguns versos de criação coletiva falando dos valores nutritivos da Castanha do Brasil (antiga do Pará), que os palhaços Tenorino (Dinho Gonçalves) e Trimpulim (eu) cantamos apregoando. De volta, saiu o livreto De Como Quando e Porque o Professor Acreano Vendeu Castanha. A renda foi entregue à Associação dos Professores para não depender tanto da burocracia estatal em outros eventos.

Do meu tempo de cordel fica o eterno agradecimento aos operários da gráfica universitária que muitas vezes se viam obrigados a fazer o serviço às escondidas, em horas mortas. Também ao saudoso Nivaldo, da gráfica da Fundação Cultural do Acre. 
E aos mimeógrafos!


quarta-feira, setembro 13, 2017

Vi num cartório

Ninguém me contou, vi com meus próprios olhos. Estava à espera de um amigo que fora tratar de uns assuntos quando presenciei um pai, com uma criança de colo, no colo, procedendo o assentamento de registro de nascimento do filho. A mãe estava de pé à porta da sala e quando em vez arriscava uma olhadela para a direção do balcão.
- Nome da criança?
- Euvo Moreira da Silva.
- Como?
- Moreira da Silva.
- O primeiro nome.
- Trouxe escrito aqui.
No papel estava escrito com letras bem legíveis o primeiro nome, EWWO. O tabelião leu Evo. Estiquei o ouvido antevendo um entrevero e nada melhor para passar o tempo que uma boa pendenga. Lá com os outros! O pai disse não. O funcionário leu fazendo uma ginástica com a garganta, Euuo. Não?
- É a junção dos nomes de dois compadres meus. Euler e Ivo. Mas eu quero com dâblius...
Imaginei que a situação pudesse descambar para a baixaria, tipo: O filho é meu, ponho o nome que quiser e como quiser... Mas, não. O pai estava tranquilo e, de certo modo até bem preparado para a discussão.
- ... ou melhor, duplos vês.
- Mas o senhor há de convir que ou se tem som de u ou se tem som de vê.
- E o William Waack?
- Hein?!
- O do telejornal. Se diz U i liam Vác.
- Ah, mas é porque o nome é inglês e o sobrenome é alemão. A pronúncia...
- Mas o dono do nome e do sobrenome, que eu saiba, é brasileiro. Se o pai dele que, pelos vistos é alemão quisesse para o filho um nome brasileiro ia buscar o correlativo do Willheim alemão, que eu andei a me inteirar na tal da internet, que é Guilherme, mas como aqui se gosta de se fazer de conta que é americano, ele pôs o Guilherme à maneira inglesa, nem aportuguesou com o u! O Waack não dá pra aportuguesar pra não dar vaca...
- É nome de família. É alemão e...
- Mas o sujeito é brasileiro, de São Paulo. Ele faz de conta que é inglês ou americano e alemão.
- Cavalheiro! Tudo é um faz de conta. Até as letrinhas. Ora, faz de conta que é u, ora...
- Então tá! Faz de conta que o meu compadre Euler é inglês e o compadre Ivo é alemão.

Mais, não posso contar, pois não vi. Meu amigo saiu às pressas aborrecido com os seus negócios. Corri atrás dele e esbarrei no ombro da mãe que continuava à espera.

- Desculpa!

terça-feira, setembro 12, 2017

Cinco pesos por error

Em Cuba, até à altura em que lá fomos, havia duas moedas. O peso cubano (CUP) também chamada moeda nacional, e o peso conversível (CUC), que é a moeda que os visitantes devem utilizar e que custava vinte e cinco vezes o valor da nacional e praticada nas atividades turísticas. Como íamos ficar lá por muito tempo, Eliana e eu usávamos as duas para poder controlar os gastos, principalmente com a alimentação, já que não conseguíamos escapar dos CUCs com a habitação e o transporte intercidades.
Ao cruzarmos com um grupo de músicos, uma deles ao sentir a nossa receptividade, deu-nos uma atenção com uma canção bem conhecida. Perguntamos onde eles se apresentavam, em que bar ou restaurante e ele disse que tinham a licença para divulgação cultural nas ruas com o devido peditório. Rapidamente tirei do bolso uma nota de cinco pesos, em moeda nacional. Automaticamente, o homem espalmou a mão em gesto de recusa indignada e avançou rapidamente para a direção dos colegas que o esperavam à esquina. Com alguns passos peguei-o pelo braço e disse: Nós não somos turistas! Estamos aqui com visto cultural. Somos artistas também. 

Que alegria, quando ele aceitou a nota com o maior prazer e nos deu um abraço fraternal.




terça-feira, julho 11, 2017

Trớ trêu

Nunca entrara no quarto do filho e só percebeu isto no momento em que se apanhou percorrendo com o indicador da mão direita os objetos do unigênito que partira no dia anterior deixando uma saudade descoberta pela ponta do dedo.

Nos sessenta anos vividos, por quatro vezes ganhou o dinheiro que lhe permitiu viver sem dores de cabeça: para a casa e o casamento, para a montagem do pequeno empório gerido pela mulher e para custear os estudos do filho que preferiu fazer a universidade no estrangeiro. Agora, depois de muito tempo, ele voltaria à mesa, mas para ganhar para ele próprio. Um dinheiro só para si, para gastar com o que lhe viesse à cabeça. Olhando o globo de mesa do filho, decidiu-se que o seu prêmio também seria uma viagem a outro país. Com um tapa fez o globo girar e, de olhos fechados, estancou o mundo com a ponta do mesmo dedo com que pela quinta e última vez acionaria o gatilho.

Se ocupar a mente não fosse tão inconveniente naquele momento, talvez sua cabeça vazia fosse invadida pela lembrança da primeira vez, quando na loucura da guerra e da puberdade, atirou-se para o revólver nas mãos do juiz, mal este acabara de girar o tambor... Não quis o quinhão que lhe coube. Jogou para o alto o monte de notas bêbadas. O que fez com que ele passasse a ser conhecido como o menino que fez chover dinheiro. Poderia também se lembrar da segunda vez, quando, nas dúvidas e incertezas do fim da guerra e da adolescência, a namorada ficou grávida. Ou da terceira vez ao buscar capital de giro para o negócio e acabou se tornando uma lenda viva no circo da morte ao jogar com três balas no tambor. Tornou-se bem vindo e as portas lhe estariam abertas sempre que quisesse e pudesse. Demorou, até que o filho inventou de estudar fora...  a quarta e logo a quinta e última.

È só uma questão de alinhamento. A espoleta fica na frente do percussor que recebe e transmite a ação do cão. Como não houve o alinhamento, ele tomou o avião rumo à cidade que lhe surgiu sob a polpa do dedo, Buenos Aires, da qual nunca tinha ouvido falar. Argentina, sim, conhecia bem por conta do tango e do futebol.

A escala na cidade do Rio de Janeiro teve que ser demorada devido a uma avaria na aeronave. No caminho para o hotel, apontava o dedo para tudo de bonito que via e alguém da companhia nomeava o espanto: Maracanã. Sambódromo. Candelária. Municipal. Aterro. Pão de Açúcar. Corcovado... Chegou a se lamentar do mundo não ter parado ali. Do hotel saiu para aproveitar a tarde que ganhara de brinde. Copacabana. De pé no Calçadão, olha o mar, em êxtase. Leva a mão direita à cabeça e cai de joelhos. O dedo na têmpora como que a apontar o espanto do vazio meditativo. A beleza do nada.

No outro dia, o avião partiu com um passageiro a menos e uma pequena nota no jornal de bordo: Mais uma vítima de bala perdida.


                                                                                                                 Petrópolis, 10 de julho de 2017

sábado, novembro 12, 2016

Siammo tutti clandestini

Quando o Berlusconi ganhou a eleição, o Francesco Litti, então a fazer o Projeto Erasmus e freqüentador assíduo do Tejo bar, flipou de vez. Os pais foram a Lisboa e o levaram à revelia dos amigos que por ele zelavam. Os pais são os pais. Tentei  encontrá-lo em sua casa, em Florença para hipotecar a solidariedade dos companheiros de Alfama. Não o encontrei. Deixei à porta um bilhete e fui dormir na estação junto com alguns sem teto e imigrantes. De volta, ao passar pela Provença para recuperar as energias em casa da Monique Julien, uma espécie de santinha salvadora dos aflitos, fiz uma canção para o amigo que, ao que soube depois, já melhorava da piração. Dei à canção o nome de De Degun (em provençal: De ninguém).
Hoje, depois de levar com Crivela, continuar levando com o Temer e não podendo rir dos americanos que vão levar dom o Trump, resgato a canção que acabou por ficar conhecida por “Siammo tutti clandestini”.



quinta-feira, outubro 13, 2016

Descobrindo-me

Descobrindo-me 
(sempre é tempo) 

Tem homo... tem hétero... 
Tem bi... também trans... 
Tem até simpatizantes 
Mas eu 
Eu sou mesmo é sem vergonha

domingo, setembro 04, 2016

Maria das Canjas

Era uma vez uma cidade em que era proibido roubar galinhas. Nada de mais, já que em quase todas as cidades que conhecemos, o roubo de galinha, e não só, é proibido. Porém, nesta, nunca ninguém havia sofrido qualquer punição por tal crime. Devido à origem do nome da cidade, Aleluia, cujo Sábado, por tradição é facultado o assalto a galinheiros, faz-se vista grossa para tal prática. Prática democrática, diga-se de passagem, já que fosse rico ou fosse pobre, ninguém ia para a cadeia por isto. Se bem que aos pobres tornava-se quase impossível atacar os galinheiros. Só os ricos e os remediados é que possuíam a manha e os meios para burlar vigilâncias e transpor os muros e as cercas eletrificadas dos ricos e dos bem remediados que tinham galinheiros. E por que os ricos e os bem remediados é que criavam galinhas? Na verdade aquela terra era muito boa para o milho. Só vendo! Cada espiga! Mesmo sem serem transgênicos é cada milhão deste tamanho! E só com a produção aviária é que se podia obter o subsídio para os milhões. Os caroços pequenos iam para os que não tinham galinhas.  São os meandros da Economia. O que não vem ao caso. O que importa mesmo é a dona Maria das Canjas. E aqui é que deveria estar o “Era uma vez”. Pois, vamos lá!
Era uma vez uma senhora que por sua vontade de ajudar aos menos afortunados chegou a alcaide de Aleluia, ou alcaida, como ela preferia que fosse nomeada, já que se tratava da primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da cidade. Alcaidessa poderia confundir com a mulher do alcaide e nem marido tinha ela que ocupava todo o seu tempo a preocupar-se com a canja que sempre oferecia aos que mal comiam o milho miúdo e às vezes nem isso. Essa preocupação rendeu-lhe o nome, o cargo e as intrigas por parte dos ladrões que faziam do roubo das galinhas um negócio muito lucrativo. Tramavam pelos corredores:
Isto de canja para os pobres tem que se acabar! Onde já se viu! Galinha de graça! Quem quiser um bom pirão tem que pagar! Eu vendo! Onde isto vai parar!?  ...
Mais que as intrigas, crescia o ódio. Um ódio que se propagava através de falsas notícias. Dizia-se que sua intenção seria acabar com os galinheiros e depois tentaria implantar o vegetarianismo, quando a todos só restaria o carolo do milho.
Aconteceu que a reserva de galinhas destinadas à canja começou a escassear e antes que se esgotasse de vez a alcaida viu-se obrigada a lançar mão da prática tão comum. Bato na boca três vezes, mas digo que parece que foi a propósito que deixaram as portas destrancadas e a eletrificação desligada para facilitar a tarefa da Maria das Canjas. Porém a doutora Januária, a quem ninguém prestava homenagens, mas que não saía da janela, viu. Gritou: “Pega ladrão!” Pegaram. Seria julgada, afinal, era um crime. Estava gravado nas tábuas da lei.
As paredes dos corredores novamente ouviam tramas. Não pode ser condenada! Abrirá jurisprudência! Essas coisas que só os advogados e os ladrões entendem, mas que dá para se perceber que se depois de alguém sofrer pena por isso, ninguém mais poderia fazê-lo.
- Estejam tranquilos. – disse calmamente o vice alcaide – Não temam! Depois, a gente muda as regras.


Não deu outra. Dois dias depois da condenação da mulher, o arauto do alcaido, como ele preferiu ser chamado, ditava. “Tendo em vista as tradições religiosas de nossa boa terra, a partir desta data, fica decretado que o roubo de galinhas é descriminalizado. Portanto, cuidem de seus galinheiros porque em Aleluia, todo dia é Sábado!”

quinta-feira, janeiro 28, 2016

Eu vi um médico chorar.

Eu vi um médico chorar. 
Primeiro, atrapalhei-me com o mecanismo de revestir o guarda-chuva junto à escada rolante. Fiquei boquiaberto com a destreza da velhinha que, com um só movimento executou a ação que eu, depois de estragar dois sacos plásticos, só consegui finalizar com as mãos a colocação da grande camisinha para que os pingos comuns lá de fora não impregnassem o piso impoluto daquele shopping da Zona Sul do Rio de Janeiro. Fiz o que devia fazer. Antes de sair, fui ao banheiro e, logo de cara, espantou-me a qualidade do papel higiênico, as toalhas descartáveis, os protetores sanitários... A limpeza! Parecia uma sala de cirurgia. Aí, lembrei-me do médico que vi chorar. Numa manifestação por melhores condições de trabalho, dizia ele, aos borbotões: “Não temos gaze!” 
                                                                           (Oliveira de Castela)

terça-feira, dezembro 08, 2015

Roll

Nem todo tango é argentino
Nem todo fado é lusitano
Nem todo blues veio da África
Nem todo flamenco é cigano
Nem todo samba é brasileiro
Nem todo rock é marciano

terça-feira, agosto 11, 2015

Cada um faz a sua parte


Rio Branco está parada. Todo mundo parou em solidariedade aos professores. Só quem se move é o Sindicato e os voluntários que colaboram no esforço de greve. A cozinha n’O Casarão não descansa no fornecimento de marmitas, cujos ingredientes vêm de todo lado: do comércio local, das hortas domésticas e até das doações da última enchente, que estavam estocadas não se sabe por quê. Eu estava indo a pé para o centro, pois os ônibus não prestavam o serviço essencial já que ninguém ia para o trabalho e os poucos que rodavam era para levar professores para a manifestação em frente ao palácio do governo, que estava em pulgas e não conseguia dormir desde que anunciou que cortaria o ponto dos faltosos e mandaria embora os de contrato provisório, o que fez com que toda a sociedade se manifestasse, começando pelos estudantes, passando pela polícia que cruzou os braços e chegando até aos hospitais, onde os médicos só tratavam os casos mais urgentes, muitos causados pelo sol e o fumo das queimadas, os únicos elementos que não aderiram ao manifesto e continuavam a maltratar a multidão que aguardava o comunicado do porta voz governamental. Eu não via a hora de ver a cara do governador. Andava o mais rápido que podia sob o calor e a fumaça... Ia todo contente... Aí, o menino Juan abriu a porta do quarto e eu acordei... tossindo e todo suado.

Foto: Everton Damasceno/ContilNet

sábado, julho 18, 2015

Síntese


Então, a Grande Mãe moldou o barro em pequenas partículas, deu-lhes o sopro da vida e vaticinou:
- Evoluam, minhas filhas!

quarta-feira, maio 20, 2015

Enquanto há o medo

Enquanto há o medo 
(História de um dueto inusitado)


Johann Gottfried Müthel podia ser assim por ter tido o pai como o seu primeiro professor; por, já aos dezenove anos de idade, ter sido organista da corte e cravista pessoal de Christian Ludwig II, o Duque de Mecklenburg-Schwerin; ou ainda, por ter sido o último aluno de Johann Sebastian Bach; por ser considerado o melhor executante de clavicórdio de sua época; ou, ainda mais, por estar vivendo em Riga, nos confins do Império Russo, tão longe dos centros musicais em voga na Europa. Porém, ele era assim porque era. Vai-se lá saber o motivo. Era assim! Tinha muito mau feitio. Se bem que o seu temperamento e seu comportamento extravagante não eram de se estranhar por serem tão comuns à maioria dos virtuosos. 

Pois, por vingança filial, vaidade profissional, orgulho do aprendizado ou raiva do destino, o fato é que ele era muito rigoroso nos contratos artísticos. Uma de suas exigências era a de silêncio absoluto em suas apresentações públicas e por isso só se apresentava quando havia neve, o que fazia com que um concerto seu fosse quase uma impossibilidade e a audiência fosse ainda mais reduzida já que com a neve aumentam as constipações. 

Para que este caso se sucedesse, três personagens tem que entrar na história: Marie-Alix, uma poeta de terras de França e, anônimos, dois noviços. Os dois religiosos exerciam as funções de sineiros do grande campanário da grande igreja da pequena aldeia onde o caso se passou. Um deles só queria saber das guloseimas convençais; o outro, o magro, só pensava no dia em que teria autorização para tocar o carrilhão. Quanto à poeta, esta caiu nas graças do alcaide que tudo fazia para agradar a visitante que lá estava de passagem e manifestara o desejo de ouvir o famoso clavicordista. 

Assim foi. O alcaide mandou vir de Riga, a peso de ouro, o talentoso músico. Mas o tempo também tem os seus caprichos. Naquela noite, a neve teimava em não cair. O desespero do alcaide só cessou quando soube que em um povoado serrano, a menos de meia légua dali, as ruas já estavam atapetadas de branco. 

Um concerto de clavicórdio é um exercício também para a audiência, que grande esforço há que fazer para sentir todas as nuances do instrumento. O ouvinte se cansa quase tanto quanto o músico que tem que ter muita concentração e destreza para oferecer todos os harmônicos e vibratos que compensam os esforços dos dois lados. 

Uma carruagem desgovernada adentra a aldeia. Todos os passageiros estão mortos. Prontamente exige-se que o sino toque a rebate. Pela precariedade da velha corda ou pelos quilos a mais do noviço que gostava de doces, o sino não chegou a dar três ou quatro badaladas. O magro, que se magoou menos com a queda, rapidamente correu para o teclado do carrilhão. Porém, não desatou a tocá-lo apenas para chamar a atenção da população. Era o seu tão sonhado momento. Fez sim um grito de alerta. Angustiante. Tenso. Mas musical. 

O músico, impassível, deixa de tocar a sua obra para responder à melodia que o vento lhe trazia de longe. Porém, sinos àquela hora da noite, não importava se harmônicos ou não, eram sinal de perigo. O alcaide foi o primeiro a abandonar o recinto, levando junto a sua hóspede, que saiu arrastada, pois, como artista que era, não queria perder a poesia daquele encontro dos extremos. Debandada geral. O improviso musical durou quase toda a noite, enquanto cada um tratava de si. Da audiência, apenas ficou para ouvir tão desconcertante concerto, o Cristiano Holtz, que foi quem me contou a história.

(Publicado no número 12 da Revista Via Latina, da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra.

quarta-feira, maio 06, 2015

Daimónico à solta

Cantiga de escárnio e mal dizer com um pocochinho de humor negro sobre as batatas transgénicas, por Filomena Cabral, Isabel Figueiredo e eu, que começou com o mote “Mortalhas de couratos e lombinhos de papelão” 

Tais batatas, diz Bruxelas
São para dar aos suínos
E para fazer papel
Ora, o porco a gente come
E o papel também se fuma
Mas com tanta transgenia
Não demora muito tempo
A gente inverte a fasquia

Se o porco a gente come
Apesar da transgenia
Um dia há-de chegar
Em que o bicho grunhirá:
"Poupa-me, sou tua tia!"

Se o bichinho é minha tia
Não lhe vou passar a faca
Com prazer, isto faria
A uns certos filhos de vaca.

Misturados à manada
Não há sorte que nos valha.
Ainda que rejeitemos
Tais lombinhos guarnecidos
De couvinhas de Bruxelas,
Ninguém nos livrará - ó bichos -
De usar a mesma gamela!

SUKIAKI É O...

SUKIAKI É O…

Versão Tejo bar da música “Ue o Muite Arukou”, de Rokusuke Ei/Hachidai Nakamura que fez grande sucesso mundial na década de 60 e ficou internacionalmente conhecida pelo título dado pelo mercado estadunidense que na dificuldade(?) de falar o nome original, chamou-a de Sukiaki, que é um nome de comida e nada tem a ver com o original.

Você vai caminhando
Sempre a olhar o céu
P’ra não deixar
Rastro do choro
Pelo chão onde pisou
Isso é ilusão
Abre o coração
Olha p’ra frente. Já passou

Se ela não o quer
Esquece essa ingrata
Siga o seu caminho
Vá comer pastéis de nata

Você vai caminhando
Sempre a olhar o céu
P’ra não mostrar
Que nessa história
Você ficou tão “down”
Deixa de bobagen
Faça uma viagem
Ou vá comer um bacalhau

Se ela não o quer
Deixe lá, cague nisso
Siga o seu caminho
Vá comer pão com chouriço

Se ela não o quer
E você sentiu o baque
Siga o seu caminho
Vá comer um Sukiaki

Se ela não o quer
E você ficou na mão
Encha a sua pança
Vá-se embora p’ro Japão

Ue o Muite
Arukou
Namida ga
Koborenai yoni
Omoidasu
Haru no hi
Hitoribotchi no Yoru