
Quem
conhece pelo menos um pouco o escritor José Saramago, fica surpreso com a forma
carinhosa com que ele me tratava. E eu fazia questão de mostrar à malta do Tejo
bar os faxes e emails e falar dos telefonemas
que dele recebia, alguns mesmo de antes de eu trabalhar no cultíssimo bar de
Alfama. As pessoas não entendiam tanta simpatia por parte de quem era tido como
avesso aos sorrisos e tapinhas nas costas. Eu tive a sorte de cair nas graças
do escritor que só me conhecia através das cartas que lhe enviava, mas ainda
assim respondia atenciosamente, o que muito me incentivava a continuar na escrita
e ir mais além dos pequenos textos que enviei para a sua apreciação. Tal foi o
incentivo que cheguei a dedicar a ele o meu último romance editado em Portugal.
Entretanto,
havia um outro eu que ele conhecia bem e por quem tinha verdadeira ojeriza e de
quem, se não fosse por ser quem é, eu diria que fugia como o Diabo foge da
cruz.
Vou
contar como esse relacionamento bipolar se deu.
Junto
com os artistas-plásticos Yves Robles e Luiz Morgadinho, participava da Feira
de Frutos Secos e Passados de Torres Novas quando soube que o Nobel de
Literatura tinha sido atribuído a Saramago. Que festa fizemos! Que choradeira!
Risos e hurras pelo golo da vitória no último minuto do prolongamento que tanto
se estendia desde que o Prémio fora instituído, vingando Vergílio Ferreira,
Jorge Amado... e tantos outros de outros países, que a embriaguez álacre do
momento não deixava lembrar, mas que bastava esses dois para mostrar o tamanho
da injustiça para com a língua portuguesa.
Eu
que raramente lido com as cores, deixei o café de lado e procurei retratar o
nosso herói com as cores da bandeira. Imaginei-o vestido de campino, montando
um alazão, com uma caneta dourada no bolso do jaleco e um sorrisinho de canto
de boca. E não é que o escritor nasceu em uma terra que é conhecida por ser a
região dos campinos! Fiquei a saber depois de pronto o desenho. Chamei ao
quadro de “O Homem da Azinhaga”.
Aconteceu
de eu estar querendo publicar o livro “Dona Peta – Conto Minha Vida” e o
encarregado da edição pediu-me a pintura como parte do pagamento, mas tirei uma
fotografia para mostrar ao retratado
.
Junto enviei as minhas receitas de
café, um opúsculo com curiosidades e maneiras de preparo da bebida, com o qual
presenteava a quem comprava meus desenhos, e uma crónica de agradecimento pelo
direito que me deu de falar a palavra nobel do jeito que quisesse e não “nóbel”
como diz a pronuncia americanizada. Afinal, agora também temos um!
Para grande surpresa, recebi um
fax, que a Miudinha, a gata da casa, ia estraçalhando enquanto a folha era
posta para fora por aquele barulho atrativo também para nós humanos que logo
corríamos para ler a mensagem enquanto o mecanismo ia escrevendo. Tratava-se de
uma mensagem da senhora Pilar del Rio que, em nome do escritor, agradecia a
simpática missiva e dizia que o escritor muito gostou de se ver vestido de
campino, que tinha se divertido com meus escritos e que experimentaria minhas
receitas com o bom café português que nunca faltava em sua casa em Lanzarote. Imaginem
como eu e a Miudinha ficamos! Eu, todo bobo e ela, assustada com dois petelecos
no focinho. A partir daí, passei a enviar os meus manuscritos, inclusive, dos
romances mais extensos. Um deles, o que escrevi junto com o Morgadinho,
Saramago fez questão de comentar. Tratava-se do “Punk, Rock & Cia. ou O
Grande Gastão – Um Romance Pimba por Estêves de Oliveira”, um livro que não
tinha autores, só personagens, assim como seriam as personagens que deveriam
pagar pela confecção dos mil exemplares numerados e assinados. Pois, o escritor
pediu que seu colaborador o senhor Acuña (?) enviasse o comentário e que
dissesse que ficou muito contente em se ver vizinho de um busto de Agostinho da
Silva (como está retratado no romance), acontece que o comentário foi feito na
língua espanhola e nós o colocamos assim mesmo no prefácio. Parece que ele não
gostou de ver um comentário seu em outra língua em um livro português. Não
tenho certeza disso, apenas conjecturei, depois da maneira fria com que o senhor
Acuña respondeu ao meu pedido de dinheiro para ajudar na publicação. “Isto, só
com o Escritor. Pessoalmente.” Disse secamente, em sua língua mãe, mas percebi
tão bem, que não tive coragem de procurar o Escritor, que foi das poucas
personagens que não participou da coleta. Puxa, que ingratidão! A gente tinha
um prefácio com palavras de Saramago e se aborrece por ele não participar da
vaquinha!


Mas isso não abalou a minha
admiração por ele, e acredito que a dele por mim (um dos eus), também não
modificou, tanto que quando lhe disse que ia me imiscuir em seu Memorial do Convento
no meu novo romance, ele disse que eu me sentisse à vontade. Assim o fiz.
Fiquei à vontade e ainda ofereci a ele. Só ele e eu sabíamos de quem se tratava
o José da Azinhaga na dedicatória “A Dona Peta que me alumiou. A José da
Azinhaga que me incentivou.”de As Agruras de Beiraldo Alma, editado pela
Teorema, em 2007. Depois da morte do escritor, Eliana e eu levamos um exemplar
para a Fundação José Saramago, em Lisboa, no qual eu destaquei a alcunha e
escrevi o nome verdadeiro.
Agora, voltemos ao entretanto.
Depois de passada a febre da
alegria, pensei que alegria maior seria ele recusar o prémio. Dar uma de
Sartre! Mas olha pra isto! Eu, que fui para o Funchal atrás dos cinco mil euros
do Prémio Edmundo Bettencourt e ao Fundão atrás dos euritos do António
Paulouro, torcendo para que um colega não vá a Estocolmo receber um milhão de
dólares, pode!? Áa, mas eu não sou Saramago! Ele foi para a Suécia. Pensei, mas
não vai vestir casaca. Vestiu. Não se vai curvar ante o Rei. Curvou-se. Ele
está guardando para o final apoteótico. Portugal não merece o prémio. Não o
impediu de participar no Prémio Literário Europeu com o seu Evangelho? Na
última hora vai lembrar de que por isso largou a Terra que tanto amava para ir
morar em ilhas distantes e vai dar uma banana para Portugal que continuará só
com o controverso nobel do Egas Moniz! Vai
dar um manguito, como bem o faria o Luiz Pacheco! Não deu!
Na minha mesquinhez, fiquei
relembrando umas falas do Jorge Amado bem antes de suas conversas com Saramago
em que ambos viam com simpatia o tal prémio e até torciam um pelo outro. Pois,
o escritor bahiano achava que nunca concorreria ao Nobel, visto que para tão
grande honra nunca escolheriam um escritor que dissertava sobre putas e
malandros. Ele mesmo dizia que não se sentia à altura e que só aceitaria se
pudesse dividí-lo com Vergílio Ferreira, escritor português que ele muito
admirava. Pronto. Está explicado. Foi contagiado pelo colega brasileiro. Se
calhar até foram pedir uma ajudinha em algum Terreiro de Candomblé, em
Salvador.
Será que foi o tanto de zeros à
direita do valor pecuniar que fez com que ele aceitasse? Herberto Hélder recusou
o Prémio Pessoa e era uma pipa de massa! Certo, com menos zeros, mas que, para
a vida singela com que vivia, bem equivalia a um nobel.
Essa minha alma frustrada só viria
a ser lavada muito tempo depois, em 2016, através da personagem Daniel
Mantovani, do filme “El ciudadano ilustre”, de Gastón Duprat e Mariano Cohn.
Mas enquanto isso...
Afinal,
apareceu a primeira oportunidade para
manifestar a minha alegria e indignação ao mesmo tempo – como pude ser tão parvo?!
foi durante a abertura da feira do Livro de Lisboa, a primeira após o prémio.
Eu lá estava em protesto contra a Câmara, que por questões burocráticas me fez
perder o atelier que tinha na Mouraria. Sabia que o Presidente da Câmara, o
João Soares, lá estaria. Meti-me numa asa de grilo, com um laço vermelho ao
pescoço e uma placa de cartão pendurada ao peito com a frase, “Fiquei só com o
email e a roupa do corpo”

Ao me aproximar da comitiva
camaral deparei-me com Saramago, um pouco aturdido meio aos rapa-pés.
Agarrei-lhe a mão, beijei-a e disse “Uum, deixa eu esfregar essa mãozinha de um
milhão de dólares”.O pobre homem nem teve reação, tal a surpresa. Escapei-me
por entre os bajuladores e fui com o meu fraque e minha placa procurar
sensibilizar o João Soares, que me ouviu cortezmente. Não consegui o atelier de
volta, mas fiz a “gozação” que tanto queria. Viu que parvoíce! E ainda fiz
mais. O Jorge Sampaio quando se tornou Presidente da República, ofereceu um
jantar no qual toda a classe artística foi convidada. Eu, enquanto participante
da Associação Cultural Teatro de Marionetas A Lanterna Mágica de Lisboa, lá
estava e, claro, também estava o artista da escrita, Saramago. Novamente nos
encontramos. Eu, dessa vez, de “smooking”, a condizer com a recepção, fui logo
reconhecido por ele que tentou esgueirar-se, mas consegui agarrá-lo pela mão dizendo umas tantas tontas
palavras. Mais parvo, impossível! Com o Herman José conversamos sobre a Dona
Peta, com o Manoel de Oliveira falamos sobre o João César Monteiro e perdi a
oportunidade de trocar ideias sobre tantos bons assuntos, inclusive Dona Peta,
que estava em voga na altura, e pior, ainda fui desrespeitoso justamente com
alguém que tanta atenção dispensou às
minhas pequenas coisas e a elas respondia com carinho. Parvo e ingrato! Mas
haveria um terceiro encontro e ai eu me redimiria. Houve. foi numa outra Feira
do Livro de Lisboa. Ele estava na banca de autógrafos. Entrei na fila. Eu, de
roupas comuns e despenteado, como geralmente me encontro em quase todas as
situações, fui traído pela voz; enquanto ele entregava um exemplar assinado, eu
disse, vim aqui só para apertar a sua mão e dizer que... não consegui terminar
a frase. Ele, sem nem ao menos olhar para mim, empurrou bruscamente a minha mão
e olhou para outro lado. Deixei assim mesmo. Bem feita! Saí vexado, com o
rabinho entre as pernas.
Saiamos do entretanto. Continuamos
a nos falar, não mais com fax, mas com telefone e correio eletrónico através
das pessoas que o assessoravam ou diretamente pelo correio com que enviava para
ele tudo que escrevia e... é o que já se sabe.
Certa vez ele manifestou o desejo de conhecer o Tejo bar e que iria
fazê-lo quando voltasse a Lisboa. Fiquei estarrecido. Ele descobriria que eu
era o mesmo gajo impertinente que tantas vezes o molestou. Como reagiria? Torci
para que ele nunca fosse a Alfama ou que fosse quando lá eu não estivesse. Já
achava piada a isso tudo. Não gostaria que se quebrasse o encanto. O que, por
um triz, não aconteceu. Na Feira do Livro de Lisboa de 2005, o sítio onde
estava com a minha banquinha autografando o “Was Bach Brazilian?” que ganhara o
Prémio Fnac/Teorema e tinha sido publicado no ano anterior ficava a poucos
metros de distância da banca de autógrafos do meu meio amigo. Uma brincadeira
da turma envolvida no romance do Grande Gastão era pegar assinatura das
personagens do romance e a minha filha Maiara foi pegar a do morador da
República Independente de Vila Morena, na Rua Colibri, número único,
pois é uma rua pequena que do outro lado tem um jardim em homenagem ao
Agostinho da Silva, o precursor dessa república dos simples. Maiara foi tal
pai. Só faltou saltar ao colo do homem. Foi com todos os meus livros na mão
pedindo para assiná-los e dizendo que deveria lê-los e que eram bons não porque
eram do meu pai mas... E o fotógrafo Salvo Parrinello a registar tudo.


“Calma, minha filha!” Disse o escritor, tomando os livros e
assinando-os um por um. “Eu já os li!”. À pala disso, vendi uns tantos
exemplares para os fãs do escritor que viram a cena. E foi aí que, numa das
pausas para descansar os dedos, ele se dirigiu para onde a Maiara abalou na
carreira. Ao perceber que ele se aproximava, escondi-me atrás da carrocinha dos
gelados e fiquei espreitando aquele homem alto de passos calmos e elegantes
olhando ao redor da minha banquinha. Ele esperou um pouco e eu esperei ele
deixar de esperar. Até hoje imagino o que seria se eu desse azo à minha vontade
que era agarrar novamente a sua santa mão. Beijá-la. E, tal filha, dançar aos
pulinhos em volta dele.
Rio Branco, 9 de setembro de 2020.
Dedicado a Sandro Silva e a Jaime Alves que boas
histórias têm com o Escritor.
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