domingo, outubro 06, 2024

A brevidade da Felicidade ou as mãos de fada da Emília

 

Se não fosse o amigo Vitor falar-me sobre sua mãe, a Emília que, como ele diz, “não lia uma linha, nem escrevia um comboio”, mas sabia todas as receitas de cor,de tantas coisas boas que transmitia oralmente possibilitando assim que, hoje, ele possa imiscuir no trabalho da equipa da cozinha de seu restaurante, o Bem me quer Mal me quer e, mesmo com todo o brio profissional da Dona Rosa e o Vladimir aceitas suas opiniões, pois sabem que quem diz é quem bem ouviu, donde concluí, em pensamento que saber ler e escrever era somente para passar a receita à distância no tempo ou espaço... Ah! Se não fosse a história da Dona Emília eu estaria incorrendo na injustiça da memória que até então só lembrava da minha avó Sinhazinha, Dona Sinhá, de nome Felicidade e que me criou até a idade escolar,apenas porque ralhava muito comigo e porque fazia uns biscoitos de polvilho que tinha o nome de brevidade e que, iguais, nunca vi em sítio algum por onde andei. E, mea culpa, eu que até já me alimentei de livros que escrevia e vendia de mão em mão, de auferir alguns prêmios literários e que no momento escrevo mais um, meã máxima culpa, não me recordava de que foi ela quem me ensinou a ler e escrever e muitas das ralhas era para que eu pegasse direito na pena de pato ou que mantivesse o padrão do caderno de caligrafia e, fazer bem para depois comer brevidade.

Em tempo: Saber escrever é só para passar a receita. A arte de fazer é outra história.


domingo, setembro 29, 2024

Obrigado, Saramago

 

Poderia estar agradecendo a Érico Veríssimo, Miguel Torga, Augustina Bessa Luís, Craveirinha, Mia Couto, Jorge Amado, Vergílio Ferreira... a tantos outros mas, calhou a Saramago.

Desde pequeno que, na escola, nas rodas de amigos ou mesmo por desconhecidos, sou gozado ou “corrigido” por dizer Nobel bem aportuguesadamente como manda a regra mneumónica do Rouxinol, que diz que para ser paroxítona terminada numa dessas letras, tem que levar acento. Porém, a maioria diz Nóbel, justificando essa mania que parece que só os brasileiros e os portugueses têm de querer dizer os nomes próprios como são falados no original, mesmo os nomes cujos fonemas não tem registo na língua portuguesa e nos obriga a muita careta e arranhar da garganta. E nem adianta alegar que o Mário Quintana garantiu que em sueco, Nobel é Nobel mesmo. Como as notícias chegam-nos através de agências de língua inglesa que não tem a mesma preocupação, reproduz-se segundo esta.

Até que... finalmente chegou a vez da lusofonia. Também tenho um! O prémio é meu, falo do jeito que quiser:

Nobel, Nobele, Nobé, Nóbi, Nober...


domingo, setembro 22, 2024

O atleta

 

Era uma vez, num futuro não muito longínquo, uma Corporação que cresceu em torno de um grande mercado de valores e veio a registar uma das maiores rendas per capita do globo corporativo. Apesar de nela morarem algumas das pessoas mais creditadas do Sistema Distribuidor de Créditos, seu mais conhecido representante era um atleta que, nos últimos Jogos, bateu um recorde acumulado de muitos anos e, de momento, todas as suas medalhas electrónicas de crédito instantâneo estavam sendo contestadas pelo comitê intercorporativo, em audiência interna.

A acusação: ter negligenciado seus compromissos profissionais não tomando a droga prescrita pelo laboratório, seu patrocinador.

- Pela manhã, deixei a droga diluída num copo d’água, na mesa de cabeceira – explica o Atleta – Tomei-a quando voltei do pequeno-almoço.

- E como explica que em todas as análises não foi encontrado nenhum vestígio e o mesmo na contra-análise?

- Tenho a minha consciência tranquila. Bebi a água. Não dei por nada porque, como todos sabem, essa substância é insípida e... Bem, a única explicação que posso dar é que a camareira do hotel, ao fazer a arrumação, tenha derramado o copo e colocado outro com água pura.

- E porque ela faria uma coisa destas?

- Por acidente. Sei lá eu!

- Ou por sabotagem. Vamos averiguar. Ela pode ser uma agente de um outro laboratório. – o presidente da mesa está nervoso – O facto é que estamos num quiproquó daqueles. Não podemos legitimar a vitória, pois não temos como satisfazer as exigências do patrocinador, que é a propaganda do seu produto. Por outro lado, não podemos tirar-lhe as medalhas alegando que você não tomou a droga. O patrocinador ficaria desmoralizado. Afinal, tantos créditos gastos e...

- Podemos anular as vitórias por outro motivo. – tranquiliza um dos membros do comitê – Tenho conhecimento de que durante os preparativos dos Jogos, o atleta cometeu uma falta imperdoável para um profissional de altíssima competição. Fez uma exibição desonerada. Não recebeu um crédito sequer. Não foi assim, meu jovem?

- Bem! Foi na minha corporação natal. Recusei os créditos que os organizadores ofereciam, mas não corri de graça. Tive a minha paga.

- Como assim?

- Essa minha terra é uma corporação daquelas criadas por uma grande superfície comercial, mas que tem uma área em estufa para experiências agrárias anciãs onde cultivam uma planta com o nome de trigo e com ela fazem uns pãezinhos que são uma das atracções turísticas da região, dos quais eu gosto muito, mas são muito caros. Portanto, eu troquei os créditos de minha apresentação pelo equivalente em pães.

- Senhores! – o presidente levanta-se com ares de quem está prestes a pedir demissão do cargo – Os senhores não percebem a gravidade da situação. Temos motivos para castigar o atleta, mas, o que dizer à opinião pública, aos consumidores? Todos viram os feitos do atleta e quererão saber que droga ele tomou, como ela se processou no metabolismo na altura da prova, enfim...

 

Como ficou resolvida a questão, sinceramente, não sei. O que sei é que muito tempo depois restou a Lenda do Atleta de Pés Alados, que dizia assim: Era uma vez, há muitos e muitos anos, um atleta que parecia ter asas nos pés e que se alimentava só de pão e água...

 

Lisboa, 2000

(Em lembrança de Jim Thorpe e de outros desportistas injustiçados)


domingo, setembro 15, 2024

O incorruptível almeida

Mais do que as taxas, chateiam-nos a espera e a burocracia dos serviços públicos, o que nos leva, às vezes, a lançar mão de alguns subterfúgios. Foi o que aconteceu comigo a quando das obras na nova casa velha de Alfama e que me deixou duas noites sem dormir e a pensar que teria sido bem melhor ter arcado com todas as chatices da legalidade.

O encarregado da reforma juntou o entulho em sacos plásticos, empilhou-os à porta e disse-me que desse uma gorjeta para o lixeiro que, com certeza, levaria junto com a recolha diária. Relutei e até pensei que seria má ideia mas, ao ver o gari, ao longe, lembrei-me de uma vez que ele, ao entrar no Tejo bar para pegar o saco de lixo e um cliente ofereceu-lhe uma bebida e ele recusou dizendo que não bebia e, conversa vai, conversa vem, o cliente ao saber dos apuros que ele passava com a doença da mulher, deu-lhe uma boa quantia que foi agradecida em típica cena de noites ébrias entre abraços e olhos mareados. Não briguei mais com a consciência e passei da intenção ao acto. Discretei a nota e fiz o pedido.

- Só lixo doméstico! – taxou com um abano de cabeça e com uma cara que por si só já me deixaria uma noite inteira de insônia que duplicou quando, ao  aperceber-me que da outra vez, fora uma prenda,um agrado, uma ajuda... desta, o nome era outro... apresentei minhas desculpas que foram recusadas juntamente com o aperto de mão.

Durma-se com uma destas!


 

segunda-feira, setembro 09, 2024

História e histórias

 

História e histórias

 

O meu amigo Horácio bem poderia ser chamado Homero ou até mesmo Heródoto porque, vai gostar de história assim, na China, ou melhor, na Grécia Antiga. Um dos temas que mais lhe atrai a atenção é a origem dos nomes das terras. Duas histórias a esse respeito vou contar mas, alerto ao ouvinte ou leitor que, a história contada pelo Horácio é como a dos outros dois e a de outros historiadores, é cheia de histórias.

A primeira, conta que uma nave portuguesa ao passar pelas Caraíbas, deixou em uma das ilhas quatro tripulantes que haviam contraído escorbuto. Como a ilha era farta de frutos, os quatro escaparam à morte. A nave, ao passar novamente pela ilha e diante do facto, baptizou a ilha de Curação. Os espanhóis, na senda dos portugueses, tiraram-lhe o til e os holandeses desnasalaram de vez o vocábulo, dando no que é hoje, Curaçao.

A outra deu-se na costa de África. Conta o Horácio que um outro navio português ancorou num sítio muito a ermo, a procura de água. A tripulação encontrou um ermitão que, apesar de viver isolado e de não falar nada, era muito solícito e amigável. Mostrou aos portugueses as melhores fontes e ajudou a carregar víveres para a embarcação. Um homem preto como a noite, muito grande e forte que foi logo baptizado de Zé e, sempre que os portugueses passavam por perto do tal sítio, diziam: “Vamos lá no Zé Negão!” Os ingleses e franceses, na senda dos portugueses e espanhóis, não tinham o jeito e ficou, Senegal.


segunda-feira, setembro 02, 2024

Senhor Arlindo, o engraxador

 


O  senhor Arlindo trabalha todos os dias. Quando o restaurante A Mourisca, a esquina da Fontes Pereira de Melo com a Andrade Corvo, está fechado, ele muda o ponto para o Forno e Fogão, restaurante mais próximo. Pela  manhã, bem cedo, lá está ele com seu fato-macaco azul escuro,impecavelmente limpo e engomado, à espera dos primeiros clientes. Bancários, empregados do comércio, vendedores, escriturários e pessoas a procura de emprego. Estava eu a observar sua cabeça branca ao rés das mesas que alternava agilmente quando,como que por pressentimento, seus olhos se erguem para a porta de entrada onde um homem de meia idade, elegantemente vestido, com ar tranquilo de executivo bem sucedido, que contrastava com a maioria dos que ali estavam, parado, a olhar carinhosamente para o senhor Arlindo que ao vê-lo, esgueira-se por entre os clientes. Abraçam-se carinhosamente, trocam beijos e algumas palavras e despedem-se com mais beijos. O empregado de mesa,ao perceber que eu os observava com curiosidade, diz-me e tom baixo:

- É seu filho.

- E fazia muito tempo que eles não se viam? – perguntei como que a perceber a razão de tanto carinho.

- Não. Isso é todo dia.


segunda-feira, agosto 26, 2024

O velho curandeiro


 

A paisagem seria totalmente desértica não fosse por três habitantes num raio de cerca de cem quilômetros e o escasso movimento da rodovia e ferrovia que cortavam a paisagem em paralelas. Um habitante cuidava do posto de serviço da rodovia. Os outros dois habitavam nas montanhas empedernidas que separavam as duas estradas.

 

Um caminhão deixa no posto de serviço o passageiro que ia tentar a vida na cidade, mas as dores o impediam de seguir viagem.

 

- É uma infecção que tenho há tempos, entre os dedos dos pés. – explica ao dono do posto que lhe ajuda a tirar as botas. – Já estava mal e com o calor da cabine do caminhão, piorou. Está insuportável.

- Já tive isso. – diz o outro, olhando as feridas. – Há quem chame pé-de-atleta.

- Mas, dizem que não tem cura.

- Sei. E sofri imenso com isso até que vim para Ca e conheci o velho que mora nas montanhas. É um curandeiro. Ele cultiva uma planta que nunca vi parecida. É rasteira, mas tem as folhas largas, arredondadas.

- É difícil de acreditar. Já fui em tantos médicos.

- Sei, sei. E todos passaram um monte de pomadas e banhos  e, nada. Pois, quando puder andar até lá, verá. Com uma só consulta... E simples. O velho veste umas roupas esquisitas, acende um cachimbo fedorento e, com um chocalho, começa a dançar acompanhado por um tambor que seu neto toca do alto de uma pedra. Você só tem que descalçar e pisar nas folhas NE mesmo lugar onde o velho pisou. Ele tira o pé e você, põe. É engraçado que você acaba por dançar também. Dá duas ou três voltas no canteiro e, pronto.

- É mesmo difícil de acreditar. Quer dizer que com dois passinhos de dança...

- Passos de mágica.

- E quantas vezes deixei de dançar por causa disso. E, agora, com uma dança...

- Claro que é só encenação do velho. Uma maneira de valorizar o trabalho dele. O que cura e a planta. Um ácido armazenado nos bulbos que tem nas folhas é injectado na pele ao pisar.

- E essa encenação é valorizada em quanto?

- O velho não leva nada. Claro que você vai ficar eternamente agradecido e de onde estiver pode mandar alguma coisa para ele. Comida, um bom vinho, coisa assim. As pessoas que ele já curou mandam sempre uma lembrancinha. Quando o comboio para no apeadeiro, é certo. Tem lá uma encomenda.

- Custa a acreditar.

- Pois, quando estiver melhor, vamos á. – fala, enquanto lava os pés do forasteiro com um bálsamo. – Vai ser difícil convencer o velho, porque ele não quem mais trabalhar. Anda desgostoso. Com umas ideias esquisitas. Mas se for eu a pedir, é capaz dele atender.

- É muito velho?

- Nem por isso. Mas inventou que não quer mais viver. Diz que perdeu a capacidade de riri. E a vida sem o riso não tem graça. Maluquices... mas entendo o velho. Perdeu tudo... e vai ficar só, pois o neto vai para a cidade. Sei como é. Passei por isso. Perdi emprego, família...

- Bebida?

- Jogo.Era uma doença que só tinha um jeito. Ficar longe das cartas. Assim fiz. Enfiei-me neste fim-de-mundo. Mas, tenho um objectivo. Minha filha está para entrar para a universidade e consegui juntar um dinheiro que dá para pagar seus estudos. É o mínimo que posso fazer para remediar tanta perda. Também não rio muito, mas morrer, só depois de ver minha filha formada. Fique aqui comigo. É bom que você me ajuda a ajeitar a casa. Há muito que precisa de uma reforma. Tapar uns buracos, coisa pouca. Quando melhorar, vamos lá ter com o velho.

O forasteiro ficou. A história do dinheiro para a filha não lhe saía da cabeça. Observou. O dinheiro era guardado no cofre atrás do frigorífico. Uma vez por semana, o dono ia à cidade fazer compras. Saía cedo e só voltava à tardinha. Seria fácil. Já conseguia calçar as botas e conhecia o caminho até ao apeadeiro.  E, a meio do caminho, o velho. A cura dos dois males que o afligiam: o físico e o financeiro.

 

O alforje estava pesado, pois muito do dinheiro era em moedas. A escalada era dorida e tinha de ser rápida.

- Onde está teu avô? – pergunta ao jovem sentado num penhasco.

- Está acolá.- e completa sem tirar os olhos do ponto onde as duas estradas pareciam juntar-se no horizonte. – Mas não adianta ir lá por que ele já não atende ninguém.

Acorda o velho que dormitava à sombra de uma pedra, junto ao canteiro das plantas mágicas que era a única coisa verde na região.

- ... e depressa que tenho que apanhar o comboio. – diante da recusa, aponta o revólver. – Senão... mato-te, velho!

- É um favor que me fazes. – responde sem mover um dedo. – Vocês levaram minhas terras, minha família, meu riso, e vão levar meu neto. Essa bala é bem vinda.

- Vá pro Diabo, velho tonto! – tira as botas e as meias e marcha sobre as plantas. – Ah! É para dançar,não é ,velho? E como é? É assim? – dança. – Assim, é Rock and  Roll. Ou será um Jazz. Assim. Que tal o Sapateado, velho? Ou uma Valsa! Trá-lá-lá-lá... Não. Vocês dançam é assim. Tum tum tum. Adeus, velho maluco. – vai-se embora a dançar, saltando sobre as pedras.

 

Ao chegar ao posto, logo deu pela falta do revólver na gaveta do balcão. Nem perdeu tempo em verificar o cofre. Apanhou a espingarda e uma caixa de munição e, com a imagem da filha na lembrança, avança para o caminho . Começa a descer as escarpas quando escuta os apelos do rapazote.

- Acuda o avô. Ele está a passar mal. Não consegue respirar. Ao longe vislumbrava o vulto do fugitivo. Não hesitou. A gratidão era eterna. Ergue os braços do velho que aos poucos retoma o ritmo da respiração entrecortada com risadas desconexas que lhe enchiam os olhos d’água e dificultava a fala.

- Então, velho, ias morrendo a rir? – vai saindo – Quando eu voltar, conta-me como foi isso.

- Não há pressa. O bobo do teu hóspede não irá longe. – diz o velho explodindo numa gargalhada. – Ah, que eu morro. Só de pensar como estão os pés dele agora...eu não aguento... imagino a dança que ele faz agora...

- Calma. Respira fundo. Conta lá, vai.

- Eu estava a dormir ali quando o teu hóspede apareceu... – e conclui entre riso. - ... acontece que as folhinhas têm de ser pisadas antes para ficar só a dose certa senão, o remédio vira veneno. Tudo tem de ser na dose certa, não é mesmo?

- Sei.Mas vou atrás do meu dinheiro. E, cuidado. Dose certa. Não vá ter outro acesso. E eu, vou dar-lhe uma dose certa de balas.

 

Mesmo que não conhecesse o caminho seria fácil seguir a trilha marcada pelos apetrechos que o outro deixava cair na trôpega caminhada. Primeiro o revólver. Notas. Moedas e outros objectos. Um monte de moedas aqui, outro mais a frente. E o próprio homem amontoado com o alforje, mochila e botas. Costas no chão. Pés para o alto. Gemidos. A dose certa de sofrimento.

 

Sem toda a parafernália, poderia arrastar-se sobre as pedras até o apeadeiro.

Não valia o preço de uma bala.

domingo, agosto 18, 2024

O desconfiado


Eram cara de um, focinho do outro. Retrato chapado. Tal e qual. Cuspido e escarrado ou, para ser um pouco esnobe e retomando à origem do dito popular, “esculpido em Carrara”. Se não fosse pela diferença de idades, daria para dizer que eram irmãos gêmeos. Era mesmo o caso de dizer, tal pai tal filho. O pai era a pessoa mais desconfiada que conheci na face da terra. Dava o bigode em São Tomé. Teve muitos problemas conjugais quando o menino nasceu. Ao crescer, pensávamos que as dúvidas se dissipariam, pois ainda muito novo já tinha os traços mais marcantes do pai. Hoje, com dezoito anos, é a despedida da vida civil, pois o jovem foi à sorte e não se safou e o quartel onde sentaria praça era longe de casa. Grande festa regada à boa aguardente. Lá pelas tantas, entre as conversas dos compadres, amigos e vizinhos, alguém remexeu na antiga ferida, com alguma alusão ao passado. Os que os conheciam melhor ficaram meio temerosos com a reacção que poderia ter uma brincadeira tão inoportuna. Mal estar geral. Silêncio absoluto. A resposta:

- Não sei, não. Eu tenho um sósia lá em Ribeirão Preto. O sujeito é a minha cara.


segunda-feira, agosto 12, 2024

O pagador compulsivo

 

Há moedas cuja quantia não nos compensa o trabalho de abaixar, mas aquela tinha um bom valor facial e nem precisava abaixar tanto já que estava no parapeito da entrada do metro, tão fácil que dava a desconfiar tratar-se de alguma partida, como daquelas de chumbar-se a moeda na calçada. Arrisquei. Olhei para um lado e para o outro com medo do ridículo e peguei. Dava para uma passagem e ainda sobrava para o café. E dava para pensar, afinal, coube a mim apanhá-la e quantos passaram por ali e talvez até a tivessem visto mas... a partida... Arrisquei e petisquei. Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado! Mas, porque eu?! Dava o que pensar. Mas impensável era saber por quantas mãos passaram por aquela moeda quede certeza, não passou pelas de um avarento, por minha sorte. Mas gostava de saber... Saber, pelo menos, das mãos da última pessoa, das quais a moeda escapou e veio pousar caprichosamente na amurada. Porém, eu não sabia que aquela moeda tão rara de achar-se na rua, havia tido por último dono uma figura invulgar: um homem que era um pagador compulsivo. Vá-se lá saber por que cargas d’água ele adquiriu a estranha mania de pagar. Muito ou pouco, pagava, consoante às suas posses e, quando estava a nenhum, pedia emprestado (e pagava). Todos os dias, tinha que satisfazer seu viciozinho. Pequeno vício de fácil satisfação pois, os tantos amigos dele se acercavam já pela manhã para o pequeno almoço. À noite, então... quantas rodadas!  Mas, esse dia foi o seu dia de azar. Fora convidado por um amigo para servir de companhia em uma viagem de negócios. Na estrada, o amigo adiantou-se e pagou o café. Conformou-se quando o amigo disse que ele pagaria o almoço. Fez planos. Comidas típicas da tal região que iriam. Bons vinhos. Ma sorte. O almoço era pago pela organização do tal encontro de negócios. Chateou-se com o amigo achando que ele já sabia disso e estava de gozação. Zangou-se com a empregada de mesa que, recém chegada de outro país e não acostumada com nossos hábitos, não aceitou a gorjeta que ele ofereceu. A tarde estava complicada. Era um completo estranho na cidade. Derradeira tentativa, antes de partirem. Três velhinhos sentados à porta de uma tasca. Ofereceu-lhes uma bebida. Ao ser recusada a oferta, entrou na tasca. “Minha senhora.” – inquiriu aborrecido com a desfeita – isto aqui é uma tasca, tem três velhinhos sentados à porta e querem me convencer de que não bebem nada. Até certo ponto eu compreendo, pois sou um estranho, portanto, o que eles pedires, a senhora pode servir. Aqui está. Veja lá o que eles querem beber.”  “Ih, cavalheiro, esses três, há muito que não bebem. Eles ficam ali só para pegar um solzinho.”  A noite não começou melhor. “A gasolina é comigo.” O depósito estava cheio. “Pago a portagem.” O carro utilizava a Linha Verde. “Na próxima parada, pago o lanche.” O amigo tinha pressa. Fim da viagem. Nem se despediu do amigo. “Amigo da Onça, isto sim.” Pensou, batendo a porta do carro, indignado. A cidade estava vazia. Como era possível? Não era assim tão tarde. Os céus estavam contra ele. Era daqueles dias que não se devia sair da cama. Mas ele não se entrega. Não podia perder as esperanças. A jornada não terminara. O dia não acabou. Ainda não deu meia-noite. No metro, um cego mendigo largava o seu ponto. “Senhor, toma lá uma moedinha.” “Já fechei a loja.” Responde, brincalhão, o pedinte. Tenta a todo o custo fazer com que o outro, já assustado, pegue a moeda. Mãos ocupadas, caixa guardada no fundo do saco, camisa sem bolso e bolso da calça furado. “Eu não vou andar por aí com uma moeda entre os dentes. Isso é porcaria.” Sentenciou o mendigo ante a última tentativa, dirigindo-se para a plataforma. que cena grotesca. O ceguinho a tentar desvencilhar-se arrastando o outro agarrado ao cós das calças. Um policial aproxima-se acudindo aos gritos e ao bater da bengala. “Senhor guarda, eu quero lhe dar uma esmola e ele não quer aceitar.“ “Homem, deixa lá o cidadão ir para sua casa em paz. Solte o homenzinho. Isto pode lhe complicar a vida.” “Eu tenho... eu preciso... Senhor polícia. Vamos esquecer este incidente. Aceita o senhor esta moeda e eu vou para minha casa sossegado. “Suborno!?” Gritou o guarda. O ceguinho pegou o comboio e ele, chorando no ombro do policial, contou todo o dia fatídico que tivera. “...e eu não consegui pagar nem um cafezinho!” “Vá para casa, vá.“ E o olhar complacente do polícia acompanhava aquela triste figura que sobe as escadas, cabisbaixo, deposita a moeda no parapeito e diz:”Fica aí para quem pegar.”

 

Eu não sabia disso. Se soubesse, acho que não pegaria a moeda.


domingo, agosto 04, 2024

O rapaz que pensava demais

 

A aldeia era tão pequena e tão tranquila que nem ao menos tinha um guarda noturno. Dois dos seus habitantes trabalhavam à noite: um, o ferreiro, que adquiriu o hábito noctívago desde o casamento com uma mulher bem mais jovem e muito bonita. (Dizem as más línguas, que era para melhor garantir a fidelidade conjugal). Trabalhava no fundo do quintal de uma casa afastada o tanto que não dava para que o som da marreta na bigorna incomodasse o sono da aldeia; o outro, um rapazote que compensava a falta de sono com a função de sineiro a marcar as horas da madrugada já que as de até as dez da noite eram revezadas entre o padre, o sacristão e, às vezes até por alguma beata ou um coroinha. Quando, por um motivo ou outro, não podia exercer a função, o sino da igreja emudecia a partir das vinte e duas e a aldeia ouvia apenas, muito ao longe, o martelar da bigorna. Os dois a bater o metal noite dentro. Um, a marcar as horas; o outro, os segundos. Os dois a trabalhar. Um a ouvir o outro. Os dois a cuidarem-se. Como cuidavam-se nas missas dominicais quando, entre um bocejo e outro, mantinham os olhos bem abertos.

O sino não tocou. O sineiro fora visitar o primo, um rapaz que morava no campo, longe de tudo. Quase um dia em lombo de burro. A viagem foi longa, mas a visita foi rápida. Tinha apenas o objetivo de tentar convencer o priminho a vir à aleia, coisa que nunca fizera.

- Não, primo. Eu penso. – recusa com a calma inerente às pessoas do campo.

- Não é a mesma coisa...

- Eu sei como é a cidade. Eu sei como é a lua, o sol. Sei até como é o mar, que está mais longe.

O sineiro engenha um argumento convincente.

- E se for para fazer um favor aqui pró primo?

- Deixa eu pensar...

- Que pensar, primo?! É coisa muito importante para mim. Tem a ver com o meu futuro. Com o meu trabalho. Eu já fiz dezoito anos e...

- E que favor é esse?

- Boa, primo. Obrigado. Muito obrigado, mesmo. Eu sabia que você me ia ajudar.

- Alto, lá!

- Por quê? Está pensando em não me...

- Que trabalho é esse que precisa minha ajuda?

- É que estou querendo ser padre.

- E isso é bom?

- Ihhhhhhh!!!!!  ...e dá dinheiro!

- E onde é que eu entro?

- Sabe o que é? É que eu preciso treinar. Baptizado, casamento, eu já ajudei. Sei como é. Mas uma extrema-unção eu nunca vi. Sabe o que é extrema-unção? Vou-te contar. São as confissões dos pecados feitas por quem está para morrer.

- E isso é custoso?

- Se é! às vezes é preciso o padre saber dar umas porradas pró filha da puta confessar.

- Sim... Mas onde é que eu entro?

- Aí é que está... Depois de amanhã, o padre vai dar a extrema-unção a um lavrador abastado que mora longe da aldeia. Por isso o primo necessita que o primo vá tocar o sino enquanto o primo vai com o padre aprender como se dá a extrema-unção. E se o primo ganhar alguma coisa, o primo divide com o primo. Concorda, primo?... Então?... Sempre me ajuda?

- Estou pensando...

- Não!

- É que o pai não empresta a mula para ir até a aldeia. Ele precisa dela para o arado.

- Eu deixo o burro!

Quase que seria mais uma noite sem o diálogo metálico, já que o sineiro passou a noite e quase todo o dia para votar. Mas, mesmo muito cansado, anunciou-se, às horas certas.

Vinte e três horas e dezasseis minutos. Chegou o primo. Tudo às pressas. Faz assim. Sobes ali. Cuidado para não caíres... Bates a meia-noite... Lá para uma já devo estar de volta e tu vais descansar. Amanhã, o primo mostra a aldeia onde mora o primo.

Cinco minutos para a meia-noite. O rapaz pensa: “Meia-noite... Quantas badaladas serão? O relógio mostra um doze. Mas doze é meio-dia. Maia-noite também se diz zero hora. Mas se eu não der nenhuma badalada, como é que o povo vai saber que horas são?  Se eu der só um toquezinho, pode confundir com o toque da uma... Vinte e quatro! É isso. Meia-noite é vinte e quatro horas”.

Uma badalada, duas badaladas...Cuidado para não cair. Três badaladas, quatro badaladas... Não olhar para baixo. Cinco badaladas, seis badaladas... O toque está diferente. Sete badaladas, oito badaladas... A música é outra. Nove badaladas, dez badaladas... O pensamento pegou o rapaz de surpresa: “Como é que o primo sabia que o lavrador ia morrer hoje??!!! Onze badaladas, doze, treze, quatorze, quinze... O sineiro ficou maluco! Dezasseis, dezassete, dezoito, dezenove, vinte. O padre, de camisolão branco, aparece, repentinamente, por detrás do rapaz que, com o susto, despenhou-se no vão da torre ficando pendurado na corda do badalo.

Na história da aldeia, só por duas vezes tem o registo de toques a rebate. Uma, a quando de um grande incêndio. Outra, que se deu há uns duzentos anos quando um bando de salteadores invadiu e saqueou a aldeia e esta, apesar de mais antiga, marcou mais a memória colectiva devido as atrocidades cometidas. Facto é que, assim como o rapaz que ora se agitava a pensar em como livrar-se do abismo, nunca tinha escutado o sino da igreja, nunca ninguém na aldeia ouvira um toque a rebate. O que será? Inundação? Ciclones? Terramotos?

Há que proteger as crianças. Corre-corre... É o final dos tempos! Dívidas perdoadas. confissões de amores reprimidos. Desavenças esquecidas. Promessas feitas e promessas reiteradas. Muita coisa inusitada. Mas, o caso que mais deu o que falar, por muito tempo, foi o encontro do sineiro com o ferreiro. Um, saindo; o outro, entrando. Os dois a correr. Um, com as calças na mão; o outro, com o malho.

 

Se a pessoa ouvinte ou leitora gostou dessa história, agradeça também ao Fernando Vila que muito contribuiu.


domingo, julho 28, 2024

O mecânico e o escritor

 


Carro igual aquele, só naquela oficina tinha conserto. E, naquela oficina, só aquele mecânico dava-lhe jeito e, quase toda semana precisava de um reparo. Coisinha aqui, coisinha ali. Parte eléctrica e mecanismo. De tudo o oficial sabia. Conhecia aquele carro como a palma da mão. Ao dar na ignição, já sabia de antemão que era uma biela, carburador, coisa assim. Certa feita, ao reparar a fiação, encontrou no porta-luvas o início de um manuscrito. Primeiro acto de uma peça de teatro. A primeira do artista escritor proprietário do automóvel. Como será que o autor vai resolver essa situação? Com o escritor, raramente se encontrava. Imaginava o desfecho. Mais uma semana e lá estavam mais umas laudas riscadas e rabiscadas e a história a desenrolar-se. O escritor escrevia, o mecânico imaginava. A trama mexia com os dois. O drama. Três semanas que o enredo não avançava. Era hora do almoço. A hora de remexer o porta-luvas. Podia tirar uma soneca, a bem merecida sesta. Jogar dominó com os colegas. Trocar anedotas. Quantas das novas que ele perdia e a história não andava. Chegou a pegar no lápis para sugerir situações mas, estancou e pensou: “Também eu sou um artista no meu ofício. Ninguém manja mais disso do que eu. E, se o dono dessa joça vier meter o bedelho no meu trabalho, eu não vou gostar. Cada macaco no seu galho!” Esperou mais quinze dias e a peça chegou ao fim para gáudio dos dois. Entrou em cartaz, fez sucesso. O mecânico não foi ver, mas deu o ‘parabéns’ ao escritor pela obra bem executada. O mesmo parabéns que recebia quase toda semana.

 

O escritor era o Millôr Fernandes e o mecânico, o Betinho, meu pai.

 

Lisboa, 3 de agosto de 2001.


domingo, julho 21, 2024

Manezim Rodrigues

 

Manezim Rodrigues. ‘Seu’ Manezinho. Manuel Rodrigues de Oliveira (que é nome de uma escola), ‘Seu’ Mané Rodrigues. Manezim Rodrigues era médico sem nunca ter ido à faculdade. A única vez que entrou numa escola, foi na inauguração da que lhe deram o nome. Pequena homenagem pelos serviços prestados à comunidade pugnando pela saúde e educação públicas. Único parteiro num raio de muitas léguas, quantas vezes era chamado de madrugada. Lá ia seu Manezinho com o burro Dourado. Paletó em uma só manga vestido e o braço descoberto puxando o Dourado, burro manso que vi montado por ele uma só vez, para fotografia. Nunca percebi o por quê de arrear o burro e levá-lo, se nunca montava. Para servir de companhia no sobe e desce serra em trilhos mal batidos na mata ou para servir de ambulância caso o problema da paciente exigisse deslocação. Para transportar as compras que fazia no retorno, não era, pois muitas vezes o vi chegando em casa com os sacos de mantimentos sobre o ombro vestido pelo paletó. Poderia ser para que o burro o conduzisse ao caminho de casa quando tomava uma carraspana na venda ou em algum velório ou festa de batizado ou outras a que era chamado pois esses convites eram uma maneira de retribuir os serviços prestados sempre de graça e, também porque todos gostavam de ter Manezim à mesa. Anedotas, boas histórias, tantos causos! Coisas que vivia e que lia em extensa biblioteca incomum para uma casa camponesa: Livros de plantas em várias línguas; compêndios de medicina; revistas atualizadas levadas por um filho que morava na cidade; enciclopédias; alguns romances; uma Bíblia e, bem velhinha, já sem uso, uma cartilha carcomida pelo tempo e pelas traças. Um copo de cerveja e dois dedos de conversa era o prazer só comparado ao de ver o pequeno cafezal florescer. Comer também era um prazer. Entre um turno e outro da capina, eram de duas a três horas à mesa onde reinava soberano o prato de caldo de feijão. A sesta tirada e, a enxada na mão outra vez. Enxada que manejava com a mesma destreza com que utilizava o seu bisturi, um canivete que trazia sempre afiado e que lancetava os nosos furúnculos, tirava os bernes do gado e, façanha maior, abriu o peito de um colono no portão do terreiro da casa para bombear a aorta. Daí, os dois dedos de prosa muitas vezes entrarem pela madrugada e a cerveja não ser uma só. Para ilustrar melhor seu Manezim, vou contar um caso:

A festa no arraial da fazenda vizinha ia animada. No terreiro, a sanfona não parava e os pares só largavam a dança quando a carne já estava no ponto. Muita comida e muita bebida. à varanda, Manezim Rodrigues sorvia uma cerveja com a calma que sempre o acompanhou, pois tinha tempo para tudo. Um gole, uma anedota. Outro gole, um causo. Eis que chega um rapaz esbaforido pedindo socorro, nervoso, agitado. “Seu Manezim, teve uma briga lá atrás. Seu Manezim, corre, meu irmão foi esfaqueado! Depressa!” Seu Manezim pegou um guardanapo de pano, entregou ao rapaz e disse:

- Vai lá e embebeda este pano no sangue e traz de volta.

Os poucos que não foram ver a confusão e ficaram na varanda, olhavam para ele impressionados  com tamanha calma e sem perceberem a intenção daquela atitude tão inusitada. O rapaz voltou, a correr, e lhe entregou o pano manchado. O senhor Manuel Rodrigues de Oliveira olhou bem o pano quase a cheirá-lo, pousou-o tranquilamente na mesa, pegou a caneca e disse, nas calmas:

- É sangue venoso. Há tempo para terminar esta cerveja.”


domingo, julho 14, 2024

Lia, a cegonha que gostava do frio



Era Lia, uma vez, uma cegonha que gostava do frio. E mais, detestava o calor. Que fazer? Era diferente. O calor fazia-lhe sofrer mais que a solidão sofrida por não ser igual às da sua espécie. Voava sempre mais alto a procurar as aragens frescas das alturas, onde planava por horas a fio e procurava sempre os sítios mais altos para  fazer o seu ninho. Quando chegava o Inverno, todas as cegonhas migravam para o Sul, menos Lia. Toda uma estação longe do escárnio que lhe atiravam pelo pecado de não ser igual. O crime da diferença. Todos os anos era assim. E Lia se cansou. Cansou-se e quando o Inverno chegou e todas migraram para Sul, Lia foi para o Norte. Cada vez mais para o frio e mais para longe das maledicências das comadres. O Norte. O frio. Que bom! Alto. Sobre as nuvens. A ponta metálica de uma torre se lhe apresentava como um bom local para fazer um ninho. Pousa. Os sons que lhe chegavam anunciavam-lhe que a vida seria dura. O nevoeiro dissipou-se. Que cidade grande! Difícil fazer o ninho. Difícil buscar comida. A solidão maior. Mas, foi a sua escolha.

 

E, hoje, a cidade de Paris tem uma nova atração. Se se olhar com muita atenção, pode-se ver uma cegonha em elegantes voos circulares ao redor da Torre Eiffel. Mas há que se olhar com muita atenção.

 

À Maiara Mariana

terça-feira, julho 09, 2024

De como e porquê Paco trocou suas férias no Algarve por um clássico da Literatura

 



Francisco e, não consegui decifrar o segundo nome na assinatura, mas com a alcunha de “Paco”, tinha um trabalho na Espanha que lhe tomava muito tempo e ainda não rendia o dinheiro suficiente para umas férias no Algarve, coisa que todos os colegas já tinham feito. Certa vez, ganhou um gordo bônus e foi desta. Iniciou o périplo por Santiago de Compostela. Foi à Porto 2001; uma visita rápida a Coimbra e uma boa parada em Lisboa, antes da última semana reservada para o destino principal. Na pensão, conheceu uma rapariga sueca que retornava do Algarve. Loura, de olhos azuis, tez temporariamente vermelha... De virar a cabeça a qualquer mouro. Um idílio iniciou-se entre eles. Um romance muito rápido já que ela só ficaria um dia em Lisboa antes de voltar para a Suécia. Da noite passada na pensão, nada sei mas, ao balcão do Tejo bar, enquanto servia-lhe um uísque sem gelo, ouvia o seu lamento – E balcão de bar é como um confessionário.

- Que vergonha! – iniciou, procurando as palavras em português – O que primeiro atraiu sua atenção foi o facto de eu ser espanhol e ela é uma apreciadora das coisas de Espanha... Acredita que ela está estudando castelhano só para ler Dom Quixote no original? E “yo”... Eu...Eu nunca li Dom Quixote! Nem no tempo de escola. Que “verguenza!”

- Não liga pra isso, não,companheiro – disse procurando animá-lo – Eu enquanto português,nunca li Os Lusíadas e, como brasileiro, nunca li por exemplo,Casa Grande e Senzala... e não tenho complexo por isso. Ele insistiu. Arranjei-lhe um exemplar do clássico de Cervantes,em castelhano. Todos dias,às horas mortas, ele vinha ao Tejo bar, pedia um uísque sem gelo e punha-se a ler. Muitas das vezes, deixava-o sozinho. Quando voltava ao bar, lá estavam um conto para a bebida e o marcador algumas páginas mais adiante. Foi assim até ao último dia em que tinha que voltar para o trabalho e deixou o livro com uma dedicatória de agradecimento e, como gorjeta, o dinheiro que gastaria na estada no Algarve. Também “gracias” Paco. De como, já sabemos,  agora, o porquê, conjectura-se. Será que sim, será que não ou será que será? O que acham?

 

Esse exemplar do Dom Quixote ofereci-o ao cliente amigo do Tejo bar, Aguinaldo Parmejane, um sujeito tão quixotesco que, se fosse com ele a história,com certeza faria ainda mais.Aposto que ele seria capaz até de aprender sueco e ver todos os filmes do Bergman.


domingo, junho 30, 2024

Dia da bola


Domingo. Animação. Nervosismo. Expectativa. Estamos de serviço, mas eu sei que, lá uma vez ou outra, vou ter um dos meus maiores prazeres: Ver a bola rolar! Quanto mais nos aproximamos do estádio, mais me sinto ansioso. Vamos trabalhar, mas eu sei que ela vai passar por mim e vou acompanhá-la com o olhar e imaginar as coisas que faria com ela. Pura brincadeira! A arquibancada está cheia e todos olham para ela. Ela é o centro das atenções. Porém, eles só querem que ela lhes cumpra os desígnios favoráveis. Por vezes, ela escapa do relvado e vai ter com a multidão e eu sinto cá uma inveja! Ingratos! Eles não gostam dela, ou melhor, podem até gostar, mas gostam mais daqueles que a disputam, brincam com ela, acariciam-na, dão-lhe beijinhos... Eu? Gosto tanto que até apetece-me mordê-la. Comê-la! Não, eles não podem gostar mais dela do que eu. Uns, tem a paixão pelo clube, os outros a usam como trabalho. Eu? Pura diversão! Chega a ser bonito o agitar das bandeiras, qualquer delas... Eu gosto mesmo é da bola! O meu colega é que sofre, coitado. É um bom profissional e não desvia a atenção da sua tarefa mesmo quando é o seu time que está a jogar. Sinto a sua angústia. Ele, de costas para o campo, com os olhos pregados na torcida. Só sofro quando não a vejo e entretenho-me a observar aquela multidão que se alegra, entristece ou revolta com resultados, como se a bola não existisse. Bobos! Domingo. Para mim, é sempre assim. Duas horas nisso.

Sinto o ligeiro puxar da trela, ergo o cu da relva e caminho com o colega para a saída. Cabeça baixa, como fui treinado, mas com os olhos a vasculhar na esperança de a terem esquecido nalgum canto do gramado. Mas isso nunca acontece! Será que alguém gosta mais da bola do que eu?

 

Lisboa, 2000

 

 

domingo, junho 23, 2024

A menina que gostava da água

 

Fascínio. Era o que a água exercia sobre a menina de quatro anos que nunca podia banhar-se devido tantos afazeres daqueles que dela cuidavam. Banho de chuveiro? Não tinha graça. De bacia? Não dá nem pra dar um mergulho. Água que a fascinava era muita. Em cachoeira, nas piscinas que formam no regato. Ah! Como seria bom tomar banho assim. Saltar. Esbater-se. Fazer a água respingar por todos os lados. Ver de perto o que há lá por baixo. Brincar de pega-pega com os peixinhos que via na piscina natural da casa rica que cuidavam os que dela cuidavam. E quem cuidava da meninanesse dia de festa na casa pobre dos que cuidavam da casa rica? Uns jogavam à bola, outros bebiam, outros dançavam. Nadar? Nem pensar. Seria intimidade  demais com os patrões que já muito faziam em permitir a festa. E a menina? Não deixem a menina ir para a água. Que é da menina? Meu Deus! A menina não sabia nada sobre divisão de classes.Que é da menina? Meu Deus!

 

No hospital, com tubinhos no nariz. Já com a corzinha rosada das bochechas. Abre os olhinhos. Olha para todos ao redor da cama. Arreganha um sorriso vitorioso e diz:

- Tomei banho!


domingo, junho 16, 2024

Amigos, companheiros à parte


Eram dois amigos. Velhos amigos velhos. Reformados. Que muito se gostavam, mas nunca podiam estar juntos. Se matavam o tempo, lado a lado, era sempre em situaçõesque a um deles desagradava e era rezinga na certa. Um gostava das coisas mórbidas, de morte, de despedida. O outro gostava da alegria,das cheganças,das coisas da vida. Por isso, estavam sempre separados. Se combinavam de irem dar uma volta ao aeroporto, um ia para a Chegada das as boas vindas, desejar boa estada; o outro, ia para a Partida e regalava-se de  dar tapinhas nas costas daqueles com quem metia conversa. Adeus, boa viagem! No hospital, enquanto um ia para o berçário fazer caretas e ouvir a música dos recém-nascidos, o outro ia para o silêncio da  morgue. Igreja? Também um bom passatempo. Mas um só ia a missa de ano, de sétimo dia ou corpo presente, o outro, para batizados, casamentos, também festas para este; para aquele, só velório. Até o jornal dividiam. Um só lia o obituário. Apenas em uma coisa os dois estavam de acordo: era quando da morte de um deles. Quem haveria de ir primeiro. Nisto sim, concordavam.

 

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Deveria ir primeiro o que gostava das chegadas. Com certeza, teria alguém para despedir-se dele e ele teria o prazer de receber o amigo, lá, do outro lado.

 


 

domingo, junho 09, 2024

A mansão dos gatos

 



A simbiose que havia entre o mercado de peixe e o velho casario era tal que, dificilmente alguém se referia a um, isoladamente do outro. Era o Mercado da Mansão ou, a Mansão do Mercado. E as vidas que existiam em ambos, entrecruzavam-se.

O mercado invadiu os terrenos extra-muros da mansão quando os pescadores organizaram a Cooperativa e pressionaram o poder político que nunca chegou a fazer a desapropriação da área que ia do muro à beira do estuário onde os barcos aportavam.

A mansão aceitou a invasão quando já estava em declínio dos faustos tempos em que dominava a região antes de sucumbir ao crescimento da cidade.

As vidas.

O barão – dono da mansão – e sua família que cede à proposta de compra de toda a herdade para a construção de um hipermercado. Os cooperativos-pescadores e trabalhadores do mercado – e suas famílias que organizam uma manifestação de protesto contra a venda. O gato ladrão – o terror do mercado, o terror da mansão.

 

Apesar da perspectiva de um bom negócio, o clima na mansão estava tenso com a tristeza da baronesa pela perda do seu cão. A baronesa não via a hora de mudar-se para um grande apartamento de cobertura em outra cidade longe do cheiro de peixe impregnado em sua vida.  Na roupa. Nos sapatos. Por toda a casa. Na própria filha, que andava de namorico com o novato do mercado e até da gatinha, sempre assediada pelo gato ladrão que foi o causador de sua tristeza. Naquele dia, a baronesa surpreendeu o ladrão a dormir refestelado na almofada da gatinha. Enxotou o gato que foi perseguido pelo cão através do jardim. Foi quando se deu o infortúnio.

- Senhora baronesa – explica o jardineiro – eu não tive culpa. Foi aquele gato. Eu estava agachado a fazer a poda. De repente, o gato passou-me por baixo das pernas. No susto, eu caí sentado. Foi quando o cão saltou a sebe e caiu assim, em cima do tesourão.

A imagem do jardineiro exibindo a tesoura de poda ainda com o seu bichinho de estimação espetado, não saia da cabeça da baronesa que a todos contagiava com sua tristeza.

- Vamos fazer um passeio. – diz o barão, acarinhando a esposa. – Há tanto tempo não utilizamos o barco. E tu gostas tanto de velejar. Vamos todos.

A gatinha também? – pergunta a baronesa chorosa. – Não posso deixá-la aqui, estando no cio, com aquele gato por perto.

- Eu não posso ir. –interrompe a filha. – Tenho aulas de piano.

-Agora vens com...

- Tenha calma, querida. Afinal, o que se passa?

- A nossa filha... Oh, meu Deus... anda de namorico com o novato do mercado. – dirige-se à filha, com ira. – Tu estás como a gata, sua desavergonhada. Oh, meu Deus! Por que esse rapaz não seguiu os passos do pai? Tinha que vir trabalhar no mercado!?

- Sabe  porquê, mãe? Porque como pescador ele não poderia estudar e ele quer se formar. Sbe porquê ele quer se formar, mãe? Porque ele sabe que a senhora e o pai nunca consentiriam o nosso casamento sendo ele um pescador ou um peixeiro... e será peixeiro por pouco tempo. Fique sabendo que ele é o melhor aluno do curso de medicina. – a baronesa fica transtornada. – E quer saber mais...

- Meu cãozinho... pobre...

- Basta! – grita o barão, dando um tapa na mesa. – Amanhã, pela manhã. Vamos todos... a gata... e o cadáver do cão. Faremos, no mar, suas exéquias.

 

A faina diária no mercado começou quase igual a de outros dias não fosse porque naquele dia, ao fim da jornada, iriam discutir a forma de protesto que utilizariam para chamar a atenção de toda a população e as palavras de ordem iam surgindo entre os pregões e fofocas inerentes ao dia a dia do mercado.

- Ó, novato. – grita a vendedora mais antiga, apontando para as traseiras dda banca do novato. – Põe-te a pau com esse gato que ele é ladrão.

- Mas todo gato não é ladrão? – pergunta o novato, mais preocupado em arrumar rapidamente a banca.

- Igual a esse, eu nunca vi. – a vendedora aproxima-se como que a segredar. – É tão ladrão que se tu deres um peixe para ele, ele não aceita. Só serve se for roubado. E escolhido!  Escolhe sempre o melhor. Sabe mais de peixe que muito freguês. É só piscar o olho e zás. É rápido como um gato.

- Pois ele é um gato.

- E não foi o que eu disse? Como um gato. Um gato é como um gato.

O novato ria-se por dentro, mas preferiu não levar a conversa adiante. Havia que terminar o mais rápido possível a montagem da banca para que, assim que sua irmã viesse lhe substituir, ele corresse para a faculdade, pois havia um exame matinal. Ele não tinha prática com a banca e enquanto vai arrumando, seus pensamentos vão para o tempo em que ia para o mar com o seu pai. Aquilo sim é que ele gostava. Era bem miúdo mas,aqui acolá, pegava o seu peixe. E era sempre uma festa. Ma o pai fazia gosto que ele estudasse pelo menos o básico. Com que afinco dedicou-se aos estudos só para mais cedo voltar para o mar mas, o olhar de sua princesinha – filha de barão com baronesa mas, para ele, princesa – cruzou com o seu, por entre as grades do muro da mansão e ele resolveu continuar os estudos. Agora, na faculdade, com os gastos que acarretava, não era possível viverem só da pesca daí, ele ter resolvido montar a banca no mercado e dividir as tarefas com sua irmã que o substituía sempre que precisava, não só para os estudos como também para as escapadas furtivas que dava para ir ter com a sua princesinha. Ainda não tinha terminado a arrumação e um freguesa lhe fazia encomenda.

- Novato, tens que aprender a usar a faca. – diz o colega da banca ao lado. – Com isto aí não vis longe.

- Tenho que praticar, afinal, o bisturi, em breve será a minha ferramenta de trabalho.

- O novato – fala alto a antiga peixeira a chamar a atenção de todos. – não limpa o peixe. Ele faz autópsia.

- Olha pra esta! – diz um pescador, chegando com uma caixa de peixes,- Autopsi. Esta é boa.

- Autópsia – corrige a antiga peixeira. – Sou peixeira...

- ...mas não sou ignorante! – interrompem, os outros, quase que em uníssono. – Já conhecemos a cantiga.

- ...e sei muitas palavras que, só os doutores. No meu tempo de varina, era cesta na cabeça e livro na mão. Cois de médicos então... Era pra me pôr a pau com eles.

- Pronto. Temos cá mais uma doutora. – o pescador tira o bisturi das mãos do novato e entrega para a velha. – toma. Faça aí uma autopsi neste robalo.

- Tenho uma palavra boa que podemos fazer com isto. Emascular o barão.

- Emascu o quê?

- Santa ignorância! Emascular... – faz um psiu para o novato que er o único, para além dela, que poderia conhecer a palavra. – Emascular o barão. – Formou-se um silêncio curioso, pois tudo que se relacionasse com o barão, por esses tempos, despertava muita atenção. Ela conclui, meio a roda. – Cortar os colhões do barão, pessoal!

Algazarra geral. Cada um quer ser o encarregado de tal tarefa. O bisturi passa de mão em mão.

- Dá cá, se faz favor. – pede o novato,preocupado com o instrumento. – Isto custa um dinheirão. É velho, mas vale. – guarda o bisturi. – Vou aprender a usar a faca. Prometo.

- Xô! – grita a velha peixeira, abanando as mãos em direção da banca do novato. – Eu não disse. Roubou-te um, o maroto do gato.

 

A labuta termina e, como combinado, estão em assembleia. Um pescador pede a palavra:

- Para além de se castrar o barão, quê mais podemos fazer para chamar a atenção? – todos riem. – Sim porque falou-se, falou-se e não ficou nada assente.

- Eu proponho que chamemos a TV e deitemos os peixes para a água. – a proposta da vendedora gera comentários favoráveis.

- Posso? – pergunta uma peixeira, erguendo o dedo, timidamente. – Eu penso que devemos oferecer o peixe. À borla.Avisamos a todos que dia tal vai ser tudo de graça.

- Boa! – exclama a anterior. E chamamos a TV, os jornais, a rádio. Todos. Vai ser melhor que e... e... como é mesmo comadre?

- Emascular.

- Isso. Vai ser melhor que emascular o barão.

- Bom. – toma a palavra o presidente da assembleia. – Vejo que esta proposta foi aceite. Para  que dia então marcamos o protesto?

- Para depois de amanhã. – a resposta foi quase unânime. – Amanhã começamos a passar palavra.

- É muito cedo. Temos que dar tempo para o barão voltar. Ele saiu hoje para o mar. – alerta o presidente, acenando para o novato acabado de chegar. – Tu sabes alguma coisa?

- Este é bufo. – comenta, entre dentes, uma colega.

- Eles voltam amanhã. Foram só fazer o funeral do cão. – o novato espera que cessem os risos. – Quanto ao comentário da colega a meu respeito... se me permitem, gostava de dizer só uma coisinha. Eu gosto tanto de lidar com peixe que estou a pensar seriamente em mudar para o curso de Medicina Veterinária e espacializar-me em Ictiologia. Gostava mesmo é de estar no mar, mas... Todos sabem que eu namoro a filha do barão, mas todos sabem que, dificilmente terei o consentimento de seus pais se não conseguir formar-me. Portanto, estejam descansados por que, sem os peixes, a banca, a cooperativa, o mercado... eu não vou a parte alguma. – termina com os olhos marejados.

- Bem. – retoma o presidente. – Amanhã é terça. Marcamos para quarta?

-Sexta. – grita alguém. – Sexta é dia de  peixe!

 

Sexta-feira. Nunca se viu tamanho burburinho no mercado. Nem nas Sextas-feiras santas. Toda a cidade estava solidária com o protesto. Faixas, cartazes, megafones. Vinha gente de longe. Cada um com sua sacola. Festa animada. Com sardinhas assadas, vinho, muita música. Tanto que ninguém ligava mais ao facto do barco do barão ainda não ter regressado. “Deve ter sabido pelo reporte da radiofonia e mudou a rota!”. Pensava a maioria. Alguns achavam que ele fora avisado da manifestação. Mas, o que importava era que a festa estava de caixão à cova. Mercado livre, inclusive, para os gatos que sem as enxotadas, banqueteavam. E o povo cantava. Improvisava rimas.

 

- O barão hoje baldou-se

O barão hoje fugiu

Foi pra casa do irmão

Ninguém sabe ninguém viu

 

- Trinta e um são trinta e um

Um mais um são dois barões

Um fugiu ficou com medo

De perder seus dois...

 

- ...testículos.

- Olha esta!

- Testi o quê?

- Testículos. Sou peixeira...

- ... mas não sou ignorante!

- Ó, dona sabichona, venha ver uma coisa. – diz o novato a arrastar a velha peixeira pelo braço. – Veja, lá. – aponta para a sua banca.

- Ena! Teu velho pegou uma piela! – refere-se ao pai do rapaz que dormia ao pé da banca. – Acorda, homem que a festa está rija!

- Deixe-o. Está cansado. Chamei-lhe para ver o gato. Veja. A senhora disse que o tal gato ladrão só comia se fosse roubado. Pois, hoje é oferecido e ele está a comer.

- Mas veja que ele escolheu muito bem.

- Tem razão. Você sabe que três daquele peixe dá para comprar um livro que preciso. E olhe que é caro. – alguma coisa brilha entre as vísceras do peixe que o gato estava a destripar. – O que foi aquilo?

- Brilhou alguma coisa. Também vi.

- Passa fora! – o rapaz remexe no peixe. – Um anel. É o anel do barão! A festa para como que por encanto. Todos olham em silêncio para o anel procurando imaginar o que poderia ter acontecido. Não! O barão morto? Não! Com quem iriam brigar, agora? O Irmão? Este nunca ligou para a mansão. Nem o conheciam. Nunca mais as implicâncias da baronesa? O novato sem a sua princesinha? Não!

- Pai. – o homem acorda. – Onde você pegou este peixe?

- Isto é peixe de mar alto. – vira-se para o lado. – Eu não estive em mar alto.

- Pai! – sacode o pai, desesperado. – Pai. O barão pode estar morto!

- Mas não era só para castrar o homem?

- A sério, pai. Preste atenção, meu pai. Este peixe veio com o seu carregamento. Procure lembrar onde o senhor o apanhou.

- Só pode ter sido na corrente que vem do farol.

- Pessoal. – o rapaz lança um olhar suplicante para os companheiros. – O barco pode estar encalhado nas rochas.

 

A equipa de resgate seguiu em sentido contrário à corrente e encontrou os náufragos. Todos com vida ainda, mas desfalecidos, com insolação. Havia três dias que o barco tinha ido a pique e eles ficaram agarrados às pedras da ilhota do farol sem água e sem comida. A festa continuou noite dentro.

 

O barão desistiu do negócio, vendeu os terrenos laterais e traseiros para ressarcir o irmão e doou a mansão e o terreno frontal para a cooperativa.

 

Muito tempo já se passou. O Mercado da Mansão continua a fazer a vida da localidade. A Mansão do Mercado continua a embelezar a cidade, mas sua beleza só pode ser apreciada a partir do mercado devido aos altos prédios que cresceram ao seu redor.

 

O barão, com o dinheiro do seguro do iate, comprou um modesto apartamento no centro da cidade, ode vive com a baronesa, a gata – já muito velhinha – e os sete filhos desta com o gato ladrão. A filha do barão tornou-se uma pianista famosa e sustenta a família. O novato não casou com a sua princesinha, mas abraçou a sua antiga paixão – o mar. Entrou para a Marinha e é oficial-médico em uma fragata.

 

O mercado cresceu. A mansão encheu-se de vida. Abriga a sede da cooperativa e os gatos vadios do mercado.

Ah! O jardineiro foi contratado pela cooperativa para cuidar do jardim e dos gatos. Todos os dias, ele distribui comida para a gataria e deixa sempre um peixe no cesto para o gato ladrão roubar.

 

Agradeço a colaboração de Luiz Morgadinho que “matou” o cão e à obra de Paulo Pontes que inspirou certos diálogos deste romancinho.