A
simbiose que havia entre o mercado de peixe e o velho casario era tal que,
dificilmente alguém se referia a um, isoladamente do outro. Era o Mercado da
Mansão ou, a Mansão do Mercado. E as vidas que existiam em ambos, entrecruzavam-se.
O
mercado invadiu os terrenos extra-muros da mansão quando os pescadores
organizaram a Cooperativa e pressionaram o poder político que nunca chegou a
fazer a desapropriação da área que ia do muro à beira do estuário onde os
barcos aportavam.
A
mansão aceitou a invasão quando já estava em declínio dos faustos tempos em que
dominava a região antes de sucumbir ao crescimento da cidade.
As
vidas.
O
barão – dono da mansão – e sua família que cede à proposta de compra de toda a
herdade para a construção de um hipermercado. Os cooperativos-pescadores e
trabalhadores do mercado – e suas famílias que organizam uma manifestação de
protesto contra a venda. O gato ladrão – o terror do mercado, o terror da
mansão.
Apesar
da perspectiva de um bom negócio, o clima na mansão estava tenso com a tristeza
da baronesa pela perda do seu cão. A baronesa não via a hora de mudar-se para
um grande apartamento de cobertura em outra cidade longe do cheiro de peixe
impregnado em sua vida. Na roupa. Nos
sapatos. Por toda a casa. Na própria filha, que andava de namorico com o novato
do mercado e até da gatinha, sempre assediada pelo gato ladrão que foi o
causador de sua tristeza. Naquele dia, a baronesa surpreendeu o ladrão a dormir
refestelado na almofada da gatinha. Enxotou o gato que foi perseguido pelo cão
através do jardim. Foi quando se deu o infortúnio.
-
Senhora baronesa – explica o jardineiro – eu não tive culpa. Foi aquele gato.
Eu estava agachado a fazer a poda. De repente, o gato passou-me por baixo das
pernas. No susto, eu caí sentado. Foi quando o cão saltou a sebe e caiu assim,
em cima do tesourão.
A
imagem do jardineiro exibindo a tesoura de poda ainda com o seu bichinho de
estimação espetado, não saia da cabeça da baronesa que a todos contagiava com
sua tristeza.
-
Vamos fazer um passeio. – diz o barão, acarinhando a esposa. – Há tanto tempo
não utilizamos o barco. E tu gostas tanto de velejar. Vamos todos.
A
gatinha também? – pergunta a baronesa chorosa. – Não posso deixá-la aqui,
estando no cio, com aquele gato por perto.
-
Eu não posso ir. –interrompe a filha. – Tenho aulas de piano.
-Agora
vens com...
-
Tenha calma, querida. Afinal, o que se passa?
-
A nossa filha... Oh, meu Deus... anda de namorico com o novato do mercado. –
dirige-se à filha, com ira. – Tu estás como a gata, sua desavergonhada. Oh, meu
Deus! Por que esse rapaz não seguiu os passos do pai? Tinha que vir trabalhar
no mercado!?
-
Sabe porquê, mãe? Porque como pescador
ele não poderia estudar e ele quer se formar. Sbe porquê ele quer se formar,
mãe? Porque ele sabe que a senhora e o pai nunca consentiriam o nosso casamento
sendo ele um pescador ou um peixeiro... e será peixeiro por pouco tempo. Fique
sabendo que ele é o melhor aluno do curso de medicina. – a baronesa fica
transtornada. – E quer saber mais...
-
Meu cãozinho... pobre...
-
Basta! – grita o barão, dando um tapa na mesa. – Amanhã, pela manhã. Vamos
todos... a gata... e o cadáver do cão. Faremos, no mar, suas exéquias.
A
faina diária no mercado começou quase igual a de outros dias não fosse porque
naquele dia, ao fim da jornada, iriam discutir a forma de protesto que
utilizariam para chamar a atenção de toda a população e as palavras de ordem
iam surgindo entre os pregões e fofocas inerentes ao dia a dia do mercado.
-
Ó, novato. – grita a vendedora mais antiga, apontando para as traseiras dda
banca do novato. – Põe-te a pau com esse gato que ele é ladrão.
-
Mas todo gato não é ladrão? – pergunta o novato, mais preocupado em arrumar
rapidamente a banca.
-
Igual a esse, eu nunca vi. – a vendedora aproxima-se como que a segredar. – É
tão ladrão que se tu deres um peixe para ele, ele não aceita. Só serve se for
roubado. E escolhido! Escolhe sempre o
melhor. Sabe mais de peixe que muito freguês. É só piscar o olho e zás. É
rápido como um gato.
-
Pois ele é um gato.
-
E não foi o que eu disse? Como um gato. Um gato é como um gato.
O
novato ria-se por dentro, mas preferiu não levar a conversa adiante. Havia que
terminar o mais rápido possível a montagem da banca para que, assim que sua irmã
viesse lhe substituir, ele corresse para a faculdade, pois havia um exame
matinal. Ele não tinha prática com a banca e enquanto vai arrumando, seus
pensamentos vão para o tempo em que ia para o mar com o seu pai. Aquilo sim é
que ele gostava. Era bem miúdo mas,aqui acolá, pegava o seu peixe. E era sempre
uma festa. Ma o pai fazia gosto que ele estudasse pelo menos o básico. Com que
afinco dedicou-se aos estudos só para mais cedo voltar para o mar mas, o olhar
de sua princesinha – filha de barão com baronesa mas, para ele, princesa –
cruzou com o seu, por entre as grades do muro da mansão e ele resolveu
continuar os estudos. Agora, na faculdade, com os gastos que acarretava, não
era possível viverem só da pesca daí, ele ter resolvido montar a banca no mercado
e dividir as tarefas com sua irmã que o substituía sempre que precisava, não só
para os estudos como também para as escapadas furtivas que dava para ir ter com
a sua princesinha. Ainda não tinha terminado a arrumação e um freguesa lhe
fazia encomenda.
-
Novato, tens que aprender a usar a faca. – diz o colega da banca ao lado. – Com
isto aí não vis longe.
-
Tenho que praticar, afinal, o bisturi, em breve será a minha ferramenta de
trabalho.
-
O novato – fala alto a antiga peixeira a chamar a atenção de todos. – não limpa
o peixe. Ele faz autópsia.
-
Olha pra esta! – diz um pescador, chegando com uma caixa de peixes,- Autopsi.
Esta é boa.
-
Autópsia – corrige a antiga peixeira. – Sou peixeira...
-
...mas não sou ignorante! – interrompem, os outros, quase que em uníssono. – Já
conhecemos a cantiga.
-
...e sei muitas palavras que, só os doutores. No meu tempo de varina, era cesta
na cabeça e livro na mão. Cois de médicos então... Era pra me pôr a pau com
eles.
-
Pronto. Temos cá mais uma doutora. – o pescador tira o bisturi das mãos do
novato e entrega para a velha. – toma. Faça aí uma autopsi neste robalo.
-
Tenho uma palavra boa que podemos fazer com isto. Emascular o barão.
-
Emascu o quê?
-
Santa ignorância! Emascular... – faz um psiu para o novato que er o único, para
além dela, que poderia conhecer a palavra. – Emascular o barão. – Formou-se um
silêncio curioso, pois tudo que se relacionasse com o barão, por esses tempos,
despertava muita atenção. Ela conclui, meio a roda. – Cortar os colhões do
barão, pessoal!
Algazarra
geral. Cada um quer ser o encarregado de tal tarefa. O bisturi passa de mão em
mão.
-
Dá cá, se faz favor. – pede o novato,preocupado com o instrumento. – Isto custa
um dinheirão. É velho, mas vale. – guarda o bisturi. – Vou aprender a usar a
faca. Prometo.
-
Xô! – grita a velha peixeira, abanando as mãos em direção da banca do novato. –
Eu não disse. Roubou-te um, o maroto do gato.
A
labuta termina e, como combinado, estão em assembleia. Um pescador pede a
palavra:
-
Para além de se castrar o barão, quê mais podemos fazer para chamar a atenção?
– todos riem. – Sim porque falou-se, falou-se e não ficou nada assente.
-
Eu proponho que chamemos a TV e deitemos os peixes para a água. – a proposta da
vendedora gera comentários favoráveis.
-
Posso? – pergunta uma peixeira, erguendo o dedo, timidamente. – Eu penso que
devemos oferecer o peixe. À borla.Avisamos a todos que dia tal vai ser tudo de
graça.
-
Boa! – exclama a anterior. E chamamos a TV, os jornais, a rádio. Todos. Vai ser
melhor que e... e... como é mesmo comadre?
-
Emascular.
-
Isso. Vai ser melhor que emascular o barão.
-
Bom. – toma a palavra o presidente da assembleia. – Vejo que esta proposta foi
aceite. Para que dia então marcamos o
protesto?
-
Para depois de amanhã. – a resposta foi quase unânime. – Amanhã começamos a
passar palavra.
-
É muito cedo. Temos que dar tempo para o barão voltar. Ele saiu hoje para o
mar. – alerta o presidente, acenando para o novato acabado de chegar. – Tu
sabes alguma coisa?
-
Este é bufo. – comenta, entre dentes, uma colega.
-
Eles voltam amanhã. Foram só fazer o funeral do cão. – o novato espera que
cessem os risos. – Quanto ao comentário da colega a meu respeito... se me
permitem, gostava de dizer só uma coisinha. Eu gosto tanto de lidar com peixe
que estou a pensar seriamente em mudar para o curso de Medicina Veterinária e
espacializar-me em Ictiologia. Gostava mesmo é de estar no mar, mas... Todos
sabem que eu namoro a filha do barão, mas todos sabem que, dificilmente terei o
consentimento de seus pais se não conseguir formar-me. Portanto, estejam
descansados por que, sem os peixes, a banca, a cooperativa, o mercado... eu não
vou a parte alguma. – termina com os olhos marejados.
-
Bem. – retoma o presidente. – Amanhã é terça. Marcamos para quarta?
-Sexta.
– grita alguém. – Sexta é dia de peixe!
Sexta-feira.
Nunca se viu tamanho burburinho no mercado. Nem nas Sextas-feiras santas. Toda
a cidade estava solidária com o protesto. Faixas, cartazes, megafones. Vinha
gente de longe. Cada um com sua sacola. Festa animada. Com sardinhas assadas,
vinho, muita música. Tanto que ninguém ligava mais ao facto do barco do barão
ainda não ter regressado. “Deve ter sabido pelo reporte da radiofonia e mudou a
rota!”. Pensava a maioria. Alguns achavam que ele fora avisado da manifestação.
Mas, o que importava era que a festa estava de caixão à cova. Mercado livre,
inclusive, para os gatos que sem as enxotadas, banqueteavam. E o povo cantava.
Improvisava rimas.
-
O barão hoje baldou-se
O
barão hoje fugiu
Foi
pra casa do irmão
Ninguém
sabe ninguém viu
-
Trinta e um são trinta e um
Um
mais um são dois barões
Um
fugiu ficou com medo
De
perder seus dois...
-
...testículos.
-
Olha esta!
-
Testi o quê?
-
Testículos. Sou peixeira...
-
... mas não sou ignorante!
-
Ó, dona sabichona, venha ver uma coisa. – diz o novato a arrastar a velha
peixeira pelo braço. – Veja, lá. – aponta para a sua banca.
-
Ena! Teu velho pegou uma piela! – refere-se ao pai do rapaz que dormia ao pé da
banca. – Acorda, homem que a festa está rija!
-
Deixe-o. Está cansado. Chamei-lhe para ver o gato. Veja. A senhora disse que o
tal gato ladrão só comia se fosse roubado. Pois, hoje é oferecido e ele está a
comer.
-
Mas veja que ele escolheu muito bem.
-
Tem razão. Você sabe que três daquele peixe dá para comprar um livro que
preciso. E olhe que é caro. – alguma coisa brilha entre as vísceras do peixe
que o gato estava a destripar. – O que foi aquilo?
-
Brilhou alguma coisa. Também vi.
-
Passa fora! – o rapaz remexe no peixe. – Um anel. É o anel do barão! A festa
para como que por encanto. Todos olham em silêncio para o anel procurando
imaginar o que poderia ter acontecido. Não! O barão morto? Não! Com quem iriam
brigar, agora? O Irmão? Este nunca ligou para a mansão. Nem o conheciam. Nunca
mais as implicâncias da baronesa? O novato sem a sua princesinha? Não!
-
Pai. – o homem acorda. – Onde você pegou este peixe?
-
Isto é peixe de mar alto. – vira-se para o lado. – Eu não estive em mar alto.
-
Pai! – sacode o pai, desesperado. – Pai. O barão pode estar morto!
-
Mas não era só para castrar o homem?
-
A sério, pai. Preste atenção, meu pai. Este peixe veio com o seu carregamento.
Procure lembrar onde o senhor o apanhou.
-
Só pode ter sido na corrente que vem do farol.
-
Pessoal. – o rapaz lança um olhar suplicante para os companheiros. – O barco
pode estar encalhado nas rochas.
A
equipa de resgate seguiu em sentido contrário à corrente e encontrou os
náufragos. Todos com vida ainda, mas desfalecidos, com insolação. Havia três
dias que o barco tinha ido a pique e eles ficaram agarrados às pedras da ilhota
do farol sem água e sem comida. A festa continuou noite dentro.
O
barão desistiu do negócio, vendeu os terrenos laterais e traseiros para
ressarcir o irmão e doou a mansão e o terreno frontal para a cooperativa.
Muito
tempo já se passou. O Mercado da Mansão continua a fazer a vida da localidade.
A Mansão do Mercado continua a embelezar a cidade, mas sua beleza só pode ser
apreciada a partir do mercado devido aos altos prédios que cresceram ao seu
redor.
O
barão, com o dinheiro do seguro do iate, comprou um modesto apartamento no
centro da cidade, ode vive com a baronesa, a gata – já muito velhinha – e os
sete filhos desta com o gato ladrão. A filha do barão tornou-se uma pianista
famosa e sustenta a família. O novato não casou com a sua princesinha, mas
abraçou a sua antiga paixão – o mar. Entrou para a Marinha e é oficial-médico
em uma fragata.
O
mercado cresceu. A mansão encheu-se de vida. Abriga a sede da cooperativa e os
gatos vadios do mercado.
Ah!
O jardineiro foi contratado pela cooperativa para cuidar do jardim e dos gatos.
Todos os dias, ele distribui comida para a gataria e deixa sempre um peixe no
cesto para o gato ladrão roubar.
Agradeço a
colaboração de Luiz Morgadinho que “matou” o cão e à obra de Paulo Pontes que
inspirou certos diálogos deste romancinho.